terça-feira, junho 13, 2006

UMA BREVE HISTÓRIA DA EXPULSÃO DO HOMEM DO CAMPO PELO CAPITAL

Rall


A monocultura dirigida para a exportação é um fenômeno antigo em nossa história. Mas a modernização da produção, com o estabelecimento de novas relações no campo e a introdução de tecnologias dispensadoras do trabalho, intensifica-se a partir dos anos sessenta. A estrutura paternalista da antiga propriedade rural, onde residia um grande número de famílias, morando ali há décadas, começa a desagregar-se neste período. No Nordeste, onde vivenciei esta realidade, o impulso das modernas usinas de açúcar vai gradativamente transformando os velhos engenhos produtores de rapadura, açúcar mascavo e pinga em fornecedores de cana-de-açúcar. Esses engenhos, geralmente seculares, antes das usinas e das modernas máquinas agrícolas, dependiam para o seu funcionamento de um grande número de moradores, que ali formavam verdadeiras comunidades. Dispunham de um pedaço de terra para o seu roçado e pagavam por isso, com dois ou três dias de serviço ao dono da terra. Trabalhavam como "parceiros".

As usinas que surgiram no início do século passado, a partir dos poucos engenhos modernizados, como ainda não possuíam grandes extensões de terras, negociavam em condições vantajosas o fornecimento de cana-de-açúcar com os proprietários desses antigos estabelecimentos. Fechar o engenho pouco produtivo, para ser fornecedor das usinas, era considerado "um bom negócio". E de fato, foi o que aconteceu: pouco a pouco foram ficando de "fogo morto". As parcerias começaram a se desfazer e o trabalho assalariado, antes limitado a algumas funções específicas, surge com força total. Com as roças invadidas pela cana, aos moradores só restavam duas alternativas para não morrerem de fome: ou vão embora puxando a cachorrinha, como assim gostavam de dizer seus detratores, ou se vendiam como assalariados mal remunerados. Esse processo, que se intensifica nos anos cinqüenta, envolvendo outras propriedades e não só os velhos bangüês, tem grande impulso nas décadas de sessenta e setenta. Acompanhando essas mudanças, consolidam-se os chamados barracões, comércio de produtos básicos, gerenciado por alguém da família dos engenhos ou de outras fazendas produtoras de cana-de-açúcar.

Com a crise do petróleo dos anos setenta e o surgimento do proálcool com grandes incentivos governamentais, plantar cana era rentável mesmo em terras pouco produtivas. Nos anos sessenta é introduzido uma variedade de cana para o plantio em tabuleiros, regiões planas e altas, situadas nos limites da mata atlântica, com pouca água mas apropriada à mecanização. Terras antes pouco valorizadas, eram ocupadas por pequenos agricultores que praticavam a agricultura familiar de subsistência. Produziam para o consumo e o que sobrava era vendido em feiras livres ou trocado por outros produtos. No final dos anos sessenta e na década de setenta, com a possibilidade de essas terras serem utilizadas para o cultivo de cana, começam a ser compradas pelas usinas e grandes proprietários a preço de quase nada. Muito ajudou, nesse processo, a propaganda enganosa que o governo fazia das cadernetas de poupança e os financiamentos a juros negativos bancados para beneficiar os grandes proprietários. Os pequenos agricultores, onde muito pouco circulava dinheiro, achavam estar vendendo suas propriedades por uma fortuna. Depois de realizada a transação, geralmente compravam uma casa na cidade; o dinheiro que restava punham na poupança acreditando na multiplicação dos pães. No entanto, a inflação e as necessidades pessoais em poucos anos acabavam com o sonho de uma vida na sombra e água fresca, como queriam crer. Agora, só restando para aquisição dos produtos vitais à sua sobrevivência a força-de-trabalho, iam ao mercado oferecê-la àqueles que lhes usurparam as terras. Viravam assalariados ou eram obrigados a venderem as casas, pôr os bagulhos que restavam nas costas e seguir em frente para uma cidade maior onde já se encontrava um parente ou um conhecido.

E os nossos moradores das grandes propriedades? Bom, esses escravizados pelo trabalho e pelo barracão tinham dificuldade em se movimentar. Nos pagamentos aos trabalhadores nas usinas e fazendas produtoras de cana-de-açúcar, sempre presente estava o dono do barracão, que de prontidão arrancava uma boa parte ou o salário inteiro do infeliz. Deixá-los devedores e sem salários era uma fórmula eficaz que garantia novas compras no barracão e sua permanência escrava na fazenda de cana. Porém, um elemento novo perturbou a ordem das coisas. Depois de 64 os direitos trabalhistas e previdenciários foram estendidos ao campo. Querendo a simpatia dessa massa desprovida, os militares golpistas até exigiam o cumprimento desses direitos. A justiça do trabalho passou a ser um instrumento de pressão para a aplicação da legislação. Apesar da extrema violência no campo, algumas ações trabalhistas ganhas por antigos moradores assombram usineiros e fazendeiros. Histórias sobre venda de parte das terras para pagar essas ações se disseminam mais rápido do que o pó dos canaviais em chamas. "Tudo menos perder patrimônio tão arduamente acumulado para essa gente! Já invadimos suas roças agora vamos destruir suas casas!", decidem. E assim fizeram. Começaram a expulsar os moradores e derrubar as casas. Braços para lavoura?, foram buscar nas cidades e pequenos povoados. Surge daí os agenciadores de mão-de-obra, que compram e vendem trabalho, os famosos gatos.

Esses fatos, a expropriação pelo capital da pequena propriedade e sua concentração nas mãos de poucos, e a expulsão de antigos moradores das grandes propriedades, empurraram mais gente do campo para a cidade no Nordeste do que qualquer fenômeno natural como a seca ou mesmo a atração exercida pelos pólos dinâmicos da economia. Processo agravado com a intensificação do uso de novas tecnologias no campo dispensadoras do trabalho. A contribuição da inflação em alta, ao ser a terra utilizada como ativos pelos detentores do capital, uns na tentativa de preservar a riqueza acumulada, outros para especular e ganhar fortunas, não pode ser desprezada. A fome de álcool dos automóveis ampliou o desastre humano e ecológico, ao aumentar o número de destilarias. A monocultura da cana, que se estende das terras baixas e férteis aos tabuleiros secos e arenosos corrigidos com toneladas de adubo, avança e destrói rapidamente o que restava de mata atlântica. Com suas máquinas modernas e sem a inconveniência do trabalhador fixado à terra, estavam livres para pilhar o planeta. Mas, mais recentemente, o fracasso do proálcool, as oscilações do mercado externo do açúcar e o fim de alguns subsídios aos usineiros que não conseguiam competir com a produtividade das usinas paulistas levaram à falência dezenas de usinas e destilarias nordestinas, num novo capítulo dessa história de concentração de riquezas e movimentação de pessoas. Hoje, nas paisagens áridas da natureza inexoravelmente destruída ecoa o lamento dos perdedores.

05.03.2003

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