quinta-feira, junho 22, 2006

Um Zumbi assombra o mundo

Rall



O mundo volta a sorrir. A economia dá sinais de crescimento consistente. O emprego, após três anos em baixa, começa reagir na locomotiva do mundo. Os analistas econômicos andam ocupados, explicando para mídia, que a recessão acabou. Mas alguma coisa não bate com a alegre aparição desses simpáticos senhores na tele de notícias. As bolsas de valores, que deveriam acompanhar esse movimento ascendente da economia mundial, sinalizam um movimento em sentido contrário, principalmente no terceiro mundo. O risco país dispara e na cor rosada das gordas bochechas dos analistas, já dá para ver alguma palidez.

A primeira vista não deixa de ser estranho em plena retomada econômica o “humor do mercado”. Mercado aonde não se busca mais produtos para satisfazer necessidades, mas acumulam-se e vendem-se papéis de variados formatos e valores. Os sinais, cada vez mais fortes, de que os juros nos EEUU vão subir abala a credibilidade dos retardatários. O capital, que vinha abundantemente se oferecendo ao mundo dos pobres, volta rapidamente ao seu porto seguro de suposto risco zero. A bolha financeira, expandida ao máximo, ameaça um brusco movimento de contração em direção ao centro.

Vamos analisar mais de perto o que vem acontecendo. Todos devem lembrar os estouro da bolha, há três anos atrás, que atingiu em cheio as bolsas da Europa e principalmente dos Estados Unidos, levando consigo a chamada “new economy” do ponto.com que se dizia dotada de novos paradigmas de crescimento sem crise. Declarando-se preocupado com a recessão, as primeiras medidas do governo Bush foi distribuir fartamente dólares, através de cortes generosos de impostos, beneficiando principalmente os mais ricos. Por outro lado reduziu os juros à quase zero e pôs em movimento o complexo industrial-militar para produzir bombas e outros artefatos, ao declarar guerra ao Iraque.

O resultado disso foi que parte do capital financeiro, acomodado aos papéis do governo americano, ao ser mal remunerado pelos baixos juros resolve dar uma volta ao mundo. É o chamado excesso de liquidez que aporta nas bolsas do terceiro mundo e as fazem subir de forma avassaladora, sem que a economia desse qualquer sinal de geração de riqueza. Um dos exemplos é o Brasil: apesar do crescimento negativo, a bolsa subiu 97% em 2003. Os títulos do governo, antes desvalorizados, também tiveram o seu momento de glória.

Para que o capital se movimente mais à vontade, alguns indicadores foram criados pelos fundos de investimentos como pista para os investidores. Um deles é o chamado risco-país. Quando desce é a hora do assalto. Quando sobe é melhor sair de baixo. O momento é de subida do risco-país no terceiro mundo que ao se antecipar ao anunciado aumento dos juros pelo Fed, sinaliza para que deixem o barco. Mas será que todos conseguem se salvar do naufrágio? Nesse jogo se há ganhadores há também os perdedores. Os últimos geralmente são o capital nativo e o médio e pequeno que não dispondo dos mesmos recursos dos mega-investidores chegam atrasados nos botes salva-vidas. Esses capitais quando saem, geralmente deixam no rastro, um chão árido e um gosto amargo na boca dos perdedores.

O aumento dos juros pelo Fed é uma certeza, a única dúvida quando ocorrerá. Os déficits comerciais e orçamentários dos EEUU devem ultrapassar um trilhão de dólares este ano de 2004. O governo americano precisa desesperadamente de recursos financeiros para fechar suas contas e a melhor forma para tê-los de volta é remunerá-los melhor. Porém, era de se esperar que as bolsas dos assim chamados países desenvolvidos, com o aquecimento da economia mundial, mantivesse seu vigor. Não é o que estamos vendo. Parece que o estouro da bolha, que teve início no segundo semestre de 2000, foi interrompida no início de 2003, com as medidas tomadas pelo governo americano que despejou no mercado uma enorme quantidade de dinheiro. Esse capital, não tendo como se reproduzir, parte vai para o consumo, gerando no mercado imobiliário mais uma bolha e outra vai para especulação nas bolsas já que os papéis americanos, com os juros baixos, não são atrativos.

O indicativo de que a bolha financeira retomou sua expansão nas bolsas americanas é que a relação entre preços e lucros (relação P/L) das ações negociadas atualmente está bem acima da média histórica, situação muito semelhante aos primeiros meses do ano 2000 quando o capital fictício atingiu o topo e logo em seguida as bolsas começaram a despencar. O aumento dos juros e a corrida do capital para se abrigar nos papéis americano, depois de se expandir artificialmente em outros mercados, pode ser o gatilho para um novo estouro das bolhas nos países “desenvolvidos” e em “desenvolvimento”, o que pode mergulhar o mundo numa crise sem precedente.

E o crescimento da economia americana? Cabe aqui analisar se esse crescimento é sustentável, como defende os arautos do capital. Como já foi dito: a farta distribuição de dólares com os cortes nos impostos e juros subsidiados soprando as bolhas, algum impacto causaria no consumo. O movimento da colossal máquina militar americana com a guerra no Afeganistão e no Iraque tem intensificado as atividades da indústria bélica como há muito não se via. Parte significativa do crescimento do PIB como também a geração de empregos deveu-se ao esforço de guerra. Se por um lado isso mobiliza a economia é bom lembrar que armas, bombas, equipamentos militares de um modo geral e homens para manuseá-los, destruí-los e serem destruídos, se na indústria bélica aparece como produção para o governo são contabilizados como custos. E custos que aumenta ainda mais o déficit orçamentário que por sua vez exige recursos de algum lugar para cobrir o rombo.

O desequilíbrio nas contas americanas, sem solução a vista mesmo com a redução do valor do dólar em relação às moedas européias e japonesas, pode trazer inflação, pressionando mais ainda os juros. O câmbio flutuante, ao beneficiar os produtos americanos no mercado mundial, tem acirrado a concorrência e impulsionado a produtividade com incorporação de novas tecnologias e a destruição de postos de trabalho. Na esperança de que a grande locomotiva não pare e continue puxando o resto do mundo, muitos países são obrigados pagarem às contas do déficit americano.

Qual a repercussão no Brasil, com contas a pagar em dólar, que vai dos royalties aos serviços da dívida externa e uma boa parte da dívida interna indexada à moeda norte-americana, crucial para garantir a entrada de novos capitais? Apesar da melhora da situação da balança comercial, que passou a ser superavitária, a dependência do Brasil desses capitais é enorme. Com a bolsa em baixa e os investimentos produtivos vacilantes, a única forma de garantir o fluxo de capital de curto prazo é manter os juros nas alturas. O investidor externo, de olho no risco-país, exigem juros proporcionais. Portanto, a crise na bolsa, pode interromper o tímido declínio que vinha sendo observado nos patamares astronômicos dos juros, com repercussões na combalida atividade econômica.

O discurso de setores da esquerda de não pagamento da dívida externa, apesar de correto, erra no seu objetivo ao acreditar que o dinheiro destinado à amortização e aos juros poderia ser investido internamente, garantindo crescimento econômico e melhoras sociais. Uma reivindicação como essa só poderia ter alguma envergadura se envolvesse todos os países endividados. Medidas isoladas ou meias medidas, despertaria a fúria do capital global e faria o país descer pelo ralo. Segundo, o não pagamento da dívida não seria a garantia de um surto de crescimento econômico e criação de empregos. Poderia sobrar alguns trocados para o execrável fome zero. Mas, o mais provável seria um aprofundamento da crise do capitalismo, exigindo novas saídas.

Hoje o mundo é totalmente dependente do capital internacionalizado para qualquer investimento. O chamado capital nacional é uma ficção. O problema é que o capital não tem mais como se reproduzir na economia “real”. Seu destino é girar em falso, sem rumo como um zumbi, produzindo bolhas financeiras aqui e acolá, simulando acumulação. É a forma que encontrou de se manter morto-vivo na sociedade do trabalho em crise.



08.05.2004

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