domingo, julho 28, 2013

O infantilismo faz nas ruas seu espetáculo

Rall

A insatisfação difusa e a violência institucional ao reprimir as manifestações pelo passe livre levaram as massas às ruas. As novas tecnologias de informação foram os meios que permitiram a comunicação entre as pessoas, garantindo a mobilização. Há, principalmente entre os jovens, uma gama de insatisfação acumulada impossível de ser respondida pelo o institucionalizado, mesmo porque, uma das principais é contra as instituições erigidas pela democracia burguesa para dar sustentação ao capitalismo. Sem esse pano de fundo que leva a inquietação, e que só deve crescer com a intensificação da crise global do capitalismo, não haveria mobilização.

Essa insatisfação, no entanto, permanece na superfície dos fenômenos gerados pela sociedade produtora de mercadorias. Há uma crença ingênua de que as instituições são passíveis de mudanças, corrigindo-se os rumos que tomaram ao serem apropriadas por indivíduos gananciosos. Aí está um grande equívoco que merece ser discutido. Pois, ao contrário do que se pensa, essas instituições que dão sustentação a sociedade que persegue a "valorização do valor" (Marx) como um fim em si, funcionam sobre a ação do "sujeito automático” (Marx), que foge ao controle das vontades. Isso, no entanto, não exime o indivíduo de responsabilidades, pois mesmo dentro dos limites do agir impostos pelo mundo fetichizado, opções que envolvem a consciência podem ser feitas.

O indivíduo ao vir ao mundo, mergulha num "substrato" que passa ser interiorizado nas  relações mais íntimas, familiares ou não, nas escolas, nas ruas, nas mídias e nos produtos da indústria cultural. Assim, sob violenta coerção, vem sendo há séculos socializados para o mercado e para o Estado. E o que compõe esse "substrato"? O núcleo duro da lógica do valor e da dissociação, que se busca amaciar com alguns floreios éticos de resultados duvidosos. Esse "substrato", impregnado de ideologias sustentadoras e justificadoras da ordem existente, que procura polir as iniquidades mais gritantes com discursos vazios, tem no aparelho do Estado financiado pelo setor privado seu principal alimentador. Este se esforça para, pelo menos na aparência, se colocar como árbitro acima dos conflitos.

O Estado tem na mídia o seu mais forte aliado, tanto na transformação das contestações do sistema em seu contrário, como na justificativa da repressão. Nesse jogo de domar e reprimir, a história das lutas sociais mostra-se cheia de "a favor do contra". O que agora observamos nas ruas, são grupos que saem armados, não para enfrentar a repressão, mas para depredar sobre o olhar passivo da polícia que tem estratégias muito bem definidas. Com isso prestam dois grandes serviços: um a repressão, pois assim pode justificar perante a população a violência contra o movimento quando acharem necessário; outro, aos que querem esvaziar as manifestações pelo medo, incluindo-se aí os governos, políticos e a mídia.

Esses grupos, formados de mônadas isoladas, geralmente infestados de provocadores e de agentes do aparelho repressivo, carregam um antissemitismo estrutural que vê na expansão do capital financeiro não um subproduto da crise geral da acumulação real, mas o bode expiatório dos males da sociedade. Não é a totalidade capitalista que combatem e nem sequer seus efeitos mais perversos. Desarmados teoricamente, onde a verdade restringe-se aos seus microcosmos empobrecidos, utilizando-se de um raciocínio simplificado e redutor, agem  desviando o foco das lutas incipientes por reivindicações imediatas, sem, no entanto, contribuir em nada para uma crítica radical e a formação de uma consciência crítica.

Provocam com a violência tolerada, o refluxo do movimento que a repressão institucionalizada com todo aparato disponível não consegue. Como nas lutas sociais não se permite inocência, isso terá um preço: logo veremos se serão agraciados pelo sistema pelo trabalho consciente ou inconscientemente prestado, ou se serão isolados a tempo pelo movimento. Para enfrentar as dificuldades internas e avançar, movimentos como o que vivenciamos, carecem de elaborações teóricas sobre os rumos a serem seguidos(1) e se organizarem conforme as questões são postas no momento da história.


28.07.2013

domingo, julho 14, 2013

As manifestações no Brasil e a crise do capitalismo

Rall

As manifestações de rua têm sido explicadas comumente como sendo protestos por mais democracia, ou seja, participação direta do povo nas decisões de governo. Aqui no Brasil, fala-se também na não polarização da política, pela tendência do partido que está no poder fazer amplas alianças em nome da governabilidade, que termina mascarando os interesses divergentes da vida real. Com isso os partidos estariam renunciando representar os segmentos sociais em troca da proximidade e benefícios do poder. Numa aliança sem oposição, blindam o sistema contra o movimento social, visto como intruso e desestabilizador dos interesses partidários. Os indivíduos, inseridos na diversidade social, não se sentindo representados levam as ruas suas demandas e contestam os partidos, os sindicatos e outras instituições. É assim que o movimento vem sendo de um modo geral olhado. Sem pretensão de querer esgotar a matéria, algumas questões merecem ser consideradas além da aparência imediata.

A primeira, por que esse apagar das diferenças na política partidária? Estará relacionada com a forma de como a política é desenvolvida aqui? Ora, a redução da distância entre os partidos não é um fenômeno brasileiro, vem sendo observado em todo mundo. É só ver as alianças na Itália, aonde o maior partido de esquerda, outrora o maior partido comunista do Ocidente, se junta a triste figura de Berlusconi para governar. Antes eram considerados inconciliáveis. Nos outros países, Alemanha, Inglaterra, França, Japão e EUA, só para citar alguns mais conhecidos, prevalecem um bipartidarismo de fachada. Apesar dos discursos, as diferenças não são impactantes quando olhamos a longo prazo as políticas dos governos de distintos partidos. A não polaridade observada aqui prevalece também lá, mesmo com os partidos não se aliando formalmente ao se revezarem no poder. Se polaridade na política é entendida como a possibilidade de mudanças reais, as diferenças, mesmo nas margens partidárias, são imperceptíveis para esmagadora maioria da população.

A segunda, como os partidos se comportam frente ao Estado ao assumir a função de governo? Antes de qualquer ação efetiva, os partidos se deixam encantar pelo poder do grande Leviatã. Dependendo da cor da bandeira digerida, o monstro disforme estende os seus tentáculos à esquerda ou à direita, não importa. Continua, porém em marcha batida sem se preocupar como é alimentado. Não existe outro Estado que não o Estado Moderno capitalista que se constrói e se metamorfoseia na sua relação contraditória com o todo social. Quando no poder o discurso ideológico dos partidos de esquerda é estraçalhado ao se confrontar com essa brutal realidade. E ao insistirem nele, o que aparentava coerência quando oposição soa dissonante e degenerado. A tendência é uma rápida perda da credibilidade. No atual estágio de dissolução do capitalismo, transformam-se em zelosos administradores dos interesses do capital. Não podia ser diferente, pois um não sobrevive sem o outro.

Quando o capitalismo atinge o limite absoluto, as instituições criadas para garantir o funcionamento dessa forma social passam a não responder, seja na condução da economia, seja para mitigar os efeitos desastrosos sob as condições de vida. Daí a percepção, ainda que difusa e não de todo consciente, de que os partidos políticos, os sindicatos, a justiça, a infraestrutura, o transporte, a educação, saúde e outros setores que desempenham as chamadas funções de Estado, não mais funcionem ou funcionam precariamente. O discurso ideológico que quer separar o Estado do mercado não enxerga que ambos são partes da mesma totalidade, a sociedade produtora de mercadorias. Foram construindo-se e redefinindo-se nos momentos de bonança e crise, numa relação íntima, mesmo nos momentos em que o primeiro parece soberano e ganha certa autonomia. A separação formal que se faz é uma abstração, pode levar partidos e movimentos ao auto-engano, acreditando no Estado enquanto um ente que pode se descolar das relações capitalistas e fazer a revolução. 

Indicadores de que o capitalismo enquanto modo de produção de "valorização do valor” (Marx) como fim em si mesmo, falha em seu objetivo em função da revolução tecnológica que racionaliza trabalho, levando a uma progressiva redução da substância social do valor, é a necessidade crescente de endividamento das empresas, pessoas, estados e a geração em grande volume de capital fictício pelo mercado e pelas políticas de estímulo a economia. Com o espasmo da crise em 2007/2008(1), os estados que teoricamente deveriam zelar pelas finanças, ultrapassam todos os limites e passam a imprimir dinheiro sem nenhuma relação com a produção de riqueza. Conclui-se então, que os juros artificialmente baixos, o endividamento, as bolhas e os outros produtos da especulação financeira como fontes de geração de dinheiro sem substância, já não eram suficientes para manter a economia artificialmente em movimento e financiar as contas públicas. 

A crise estrutural do capitalismo é sentida pelos sujeitos de diversas formas, independente da inserção social. Os melhores informados e bens posicionados nas instituições  e empresas passam então a administrá-las em função de interesses próprio, fazendo com que estas passem a girar em torno destes. As formas de pagamentos por bônus aos executivos que não se consegue regular, como prêmio por desempenho, é um exemplo de como se tende a desconsiderar os riscos quando se trata de defender esses interesses. Os negócios privados incrustados no aparelho de Estado, quando convertidos em escândalos pela grande imprensa, manifestam bem a dimensão da crise. A  indignação dos punidos, quando muito raramente tem que pagar por envolvimentos, mostra o quanto está naturalizada essa ralação. Reagem como se lhes tivessem usurpado algum direito e como se perguntassem por que eles se todos fazem a mesma coisa. Quanto a isso não deixam de ter razão. A morte do aparente “homem público burguês”, sem deixar memórias da sua efêmera passagem, é mais uma prova de que as instituições criadas para dar sustentação ao capitalismo e mediar a feroz competição, entraram em colapso com a crise global e estimula todo tipo de comportamento.

Nos momentos mais agudos das lutas por reivindicações específica das classes ou grupos sociais, o Estado coloca-se na condição de guardião da ordem, mas simultaneamente, através de setores especializados, procura criar condições para que a energia liberada reforce a forma social. A indústria cultural, principalmente a mídia televisiva, agindo em sintonia com outros aparelhos no controle social, busca transformar protestos em espetáculos, onde desfilam para o consumo de passivos espectadores bandidos (os cognominados de vândalos) e mocinhos, como visto nas manifestações mais recentes. Para ficar mais emocionante, liberaram seus atores para compor linha de frente dos que eles queriam transformar em mocinhos. É preciso separar o espetáculo midiático ideologizado a serviço do sistema do que de fato se quer nas ruas, para melhor entender o que se passa.

O conflito entre o discurso que procura dar forma à falsa consciência e a realidade dos fatos é percebido e têm levado as pessoas espontaneamente as ruas que, muitas vezes, além das reivindicações concretas, se manifestam com desaprovações moral. Este nexo entre as instituições em crise e a crise de acumulação do capital com seus efeitos colaterais no social, é um fato real e não moral que precisa ser discutido e desvendado pelo movimento. Portanto, qualquer saída que busque  reforma do instituído, que não discuta a possibilidade de construção de um mundo diferente do totalitarismo do mercado e de opções totalitárias do Estado, é pura ilusão. Os políticos  para se manterem no poder, já tomaram a dianteira e discutem em seus partidos, no executivo e no parlamento mudanças para que tudo continue como está. No entanto, o retumbante fracasso da manifestação “chapa branca” organizada e paga pelas Centrais Sindicais e seus partidos, mostra o que já se sabia: há muito ficaram para traz e agora foram suplantadas pelo movimento espontâneo que tomou as ruas. A ponte que essas entidades e tantas outras achavam que faziam entre os movimentos sociais e o poder, amortizando com manobras as lutas quando lhes interessavam, foi definitivamente rompida, o que deverá dificultar a adesão a qualquer coisa que venha ser aprovada por se ter ouvido a “voz da rua”.

(1) A retração da economia e a destruição de empregos
14.06.2013

sábado, julho 06, 2013

Olhando para os eventos no Egito em busca de reflexões


Rall

‘Na unilateralidade de afeto e emoção reificadas
Por frias normas sem ouvido pra’ belas canções
A morte do humano em trombetas é anunciada
E logo só nos restam fragmentos de sensações ‘.



"É preciso ficar claro que a derrubada de Mubarak, mesmo que haja eleições livres e limpas, ainda uma dúvida, não significa nenhuma “ruptura com o contínuum da história” (Walter Benjamin). As formas de dominação e sofrimentos poderão perpetuar-se e dificilmente haverá solução para o desemprego, cuja tendência é acentuar-se com a crescente automação da produção. A rebelião, porém, consolidando-se como movimento de resistência ao que está aí, tem importante papel ao tirar debaixo do tapete, forçando uma pauta, questões que incomodam os gestores da crise do 
capitalismo*”.

Os riscos estavam presentes nas primeiras barricadas do movimento dos jovens egípcios. Era de se esperar, a não ser a partir das análises obtusas à direita e à esquerda, que a rebelião no Egito poderia abortar. Antes mesmo das eleições, não havia expectativas, e nem se quer discussões sobre a crise global da qual essas rebeliões são filhas, que não restringisse as opções a uma teocracia religiosa no comando do Estado ou a volta da ditadura com o apoio do exército, agora clamada nas ruas pelas massas decepcionadas.

É o que de fato observamos. Primeiro, a teocracia eleita fracassou miseravelmente na tentativa de resolver os graves problemas sociais e econômicos desse País, com filantropias e medidas repressivas, principalmente contra as mulheres, em nome do Islã, como forma de esconder a sua incapacidade de resolver os problemas. Segundo, as manifestações puxadas por uma classe média laica empobrecida, pede agora o exército de volta ao poder.

Como fracassou o regime teocrático, pois não tinha respostas de como atender as mais elementares demandas da população, deve fracassar o regime agora sustentado pelo exército, que mais tarde ou mais cedo deverá usar as forças das armas para reprimir o movimento. As lutas que hoje se travam nas ruas, mantendo-se limitadas as questões do cotidiano que de forma alguma pode deixar de ser desconsideradas, não romperão os limites impostos pela gestão autoritária do capitalismo em crise.

O exemplo do Egito deveria servir para uma profunda reflexão dos movimentos em todo mundo, em particular no Brasil. Não bastam as lutas pelas questões imediatas ligadas a sobrevivência das pessoas piorada com a crise. É importante que se discuta como sair da crise olhando além da sociedade produtora de mercadorias, mesmo sabendo-se das implicações e das enormes dificuldades de se transcender criticamente esses limites. Manter-se nos problemas imediatamente sentidos é pactuar com os que não desejam mudanças profundas e aceitam que o sofrimento das pessoas e a barbárie tendam aumentar com as saídas até agora propostas, que beneficiam uma minoria inexpressiva no comando da economia e do Estado, como mostram as análises mais responsáveis. 


06.06.2013