quarta-feira, janeiro 15, 2014

Não há prisão que mude o rumo das coisas

Rall

Com a concretização da prisão dos condenados pelo chamado escândalo do mensalão, forma de pagamento dos políticos por fora pelo poder público ou pelos grupos privados com interesses específicos, tão antiga quanto às instituições parlamentares deste País, causou certo encanto e, consequentemente, a ilusão de que era possível fazer alguma coisa para mudar essa realidade.  Fatos recentes como a prisão de um grupo de fiscais da Prefeitura de São Paulo, seguida de revelações dos vários caminhos percorridos pelo dinheiro da corrupção, mostra que nada mudou.

Prisões e julgamentos que tem acontecido em casos como esses, tem animado alguns grupos que levantam a bandeira da moralidade pública e da necessidade do Estado se reformar para de fato ser o provedor do “bem comum”. Apesar dos discursos inflamados e das boas intensões (o inferno está cheio, já se dizia), os obstáculos vindo de todos os lados, principalmente dos partidos políticos, são enorme para qualquer tentativa de reforma do Estado que torne mais transparente à contabilidade das entradas e saídas dos recursos públicos. Isso por um motivo muito simples: o dinheiro é o fim último que move automaticamente do mais pacato ao mais ousado cidadão na sociedade capitalista, e os meios para adquiri-lo são cada vez mais suspeitos.

Esse quadro tende a se agravar nos momentos de agudização da crise de acumulação pela qual passa o capitalismo.  As dificuldades de “valorização do valor” (Marx) na produção real leva o dinheiro circulante ser cada vez mais desprovido de sua substância, o “trabalho abstrato” (Marx). O dinheiro que em movimento não mais aporta em sua totalidade na produção real por falta de rentabilidade, busca espaços no mercado mundial e nos estados aonde seja possível à multiplicação. Utiliza-se para isso de artifícios financeiros como especulação, bolhas, pirâmides, ou simplesmente é impresso em volume já mais visto pelos órgãos garantidores, os bancos centrais, sem nenhuma relação com a riqueza material produzida.

O dinheiro sem substância assim gerado (capital fictício), é uma espécie de anti-dinheiro que ao juntar-se com o dinheiro que expressa o “trabalho abstrato” realmente efetivado a partir da produção real, tende, à medida que essa mistura explosiva cresce, acelerar a crise do “modo de produção baseada no valor” (Marx) com os sucessivos colapsos financeiros, acompanhados de grandes desvalorizações do dinheiro, impactando negativamente na economia real. Dos anos 80 até os tempos atuais, quando o capitalismo parece ter atingido o “limite interno absoluto” (Kurz) em função da Terceira Revolução Industrial racionalizadora de força de trabalho pela automação da produção, assiste-se uma sucessão desses colapsos e grandes destruições na economia e de vidas.

Mas, como a produção de mercadorias pela economia real, que pode ser dirigida para atender ou não necessidades humanas, precisa ser mantida e expandida para que a paralisia da produção não leve o capitalismo a falência total, parte do dinheiro sem substância é, pois, aí reciclado sem produzir mais-valia suficiente para valorização do capital. Mas, como a finalidade última da produção não é satisfazer necessidades e sim gerar mais dinheiro, os gestores da economia só veem como saída novas disponibilidades financeiras para cobrir os déficits seja do Estado que para se financiar depende da valorização em crise, seja para o consumo das famílias e das empresas. Para isso crédito é facilitado com juros baixos e alongamento dos prazos; através da formulação de novos produtos financeiros pelo mercado, bolhas são estimuladas e os governos continuam se endividando, permitindo uma liquidez alta com o objetivo de manter a produção de mercadorias sem limites. Portanto, instalou-se um círculo vicioso que tende a empurrar os mercados e os governos a criar num crescente, mecanismos que aumentam o volume de capital fictício para compensar a desvalorização em alta.

Só o Banco Central dos EUA, além dos juros negativos, vem imprimindo pondo em circulação 80 bilhões de dólares por mês, sem nenhuma relação com o que é de fato produzido para estimular o consumo e a produção. O imenso aporte de recurso disponibilizado pelo Estado no início da crise financeira em 2008 tinha-se mostrado insuficiente. Frear o crescimento econômico como querem alguns ambientalistas e teóricos de um capitalismo menos compulsivos, é como cortar a jugular do capital, o que seria uma contradição em termos para os que defendem essa posição, mas são incapazes de formular uma crítica radical a esse modo de produção.  

Apesar da reação recente da economia americana tida como positiva, vem de analistas insuspeitos ao sistema (Summers, Krugman e outros) a retomada da hipótese de “estagnação secular” dos países desenvolvidos, em particular dos EUA e Japão. Essas análises, muito relacionadas com as dificuldades de recuperação do mercado de trabalho, não explicam porque as economias estagnaram. Para isso teriam que por o dinheiro que hoje circula nas diversas formas em seu devido lugar: vê-lo como manifestação do “trabalho abstrato” e, ao mesmo tempo, a obsolescência deste. Tais análises, por descreverem algumas árvores e não a floresta, terminam justificando o aprofundamento das políticas que se ancoram no capital fictício para manter a economia em aparente movimento. Temos como exemplo disso as medidas de intensificação da política de “afrouxamento monetário quantitativo” no Japão e a timidez com que o Banco Central dos EUA fala em reduzir a injeção de dinheiro na economia.

É nesse contexto de crise das categorias fundamentais do modo de produção capitalista, aonde se incluem mercado, Estado e o dinheiro, que devem ser analisados os desvios de recursos públicos para alimentar interesses privados e político-partidários. As ilusões de um Estado diferente, “provedor do bem comum” em uma sociedade produtora de mercadorias, é uma ficção regressiva que pode alimentar desejos autoritários de corrigir os “desvios humanos”(1). A crítica à consciência obnubilada e ao agir do “sujeito automático”, presos ao fetichismo da mercadoria, do capital e das instituições que lhes dão sustentação, para ser efetiva deve ser categorial se se quer alcançar a raiz dos problemas que incomodam. Isso não significa que as reivindicações mais imediatas pela sobrevivência e a ocupação dos espaços das cidades não sejam legítimas. A dificuldade está em articular essas reivindicações à crítica radical da forma-valor, do modo de produção capitalista e do patriarcalismo.     

(1) O mensalão, o Estado e as ilusões da esquerda

15.01.2014