quarta-feira, dezembro 31, 2014

Com os economistas nos últimos minutos de 2014

Rall

O ano termina com o discurso hegemônico em um largo espectro político, que vai da esquerda keynesiana a amplos setores da direita, defendendo a necessidade de mais Estado regulando o mercado para que se possa sair da crise. Desse ponto de vista a desregulamentação neoliberal é responsabilizada pela crise financeira de 2008. A crise, no entanto, não está relacionada com condições das instituições da sociedade conter e controlar mais ou menos o mercado. De fato, essa capacidade vem se perdendo no tempo muito rapidamente. Mas se ela fosse mantida, a crise seguiria seu rumo, pois diz respeito à incapacidade do capitalismo no atual estágio gerar "riqueza abstrata" pela crescente redução da substância dessa riqueza, o “trabalho abstrato”, na produção de mercadorias, em consequência dos avanços tecnológicos que levam ao aumento da produtividade e tornam o trabalho que produz valor supérfluo. Esse processo, estimulado pela concorrência, é o que levou a máquina de “valorização do valor”(Marx) a estagnação.

O neoliberalismo foi uma resposta a essa estagnação que não deu certo e resultou em aumento do endividamento, estouro de bolhas, crise financeira e social. O neokeynesianismo dos tempos atuais, tão vivamente defendido pelos economistas de esquerda em contrapartida ao fracasso do neoliberalismo, não vai tirar a economia da estagnação, agora designada como secular. Como tudo indica, desembocará em insolvência dos estados e numa crise financeira de magnitude desconhecida, mas possivelmente pior do que a de 2008.  

Os economistas, mesmo que neguem, em suas análises tratam o trabalho, o dinheiro e a natureza como "exterior" ao capitalismo. No entanto, trabalho é uma forma especial de mercadoria, específica da produção burguesa, que se diferencia das demais por produzir valor, cuja expressão é o dinheiro. E produz valor no metabolismo com a natureza ou com objetos naturais já trabalhados (insumos, outras mercadorias). É na crise do trabalho enquanto “substância do valor”, que se deve buscar a essência do colapso da economia real.

A destruição da natureza e a crise ecológica são vistas como contornáveis no sistema produtor de mercadorias. Mas a tendência com a crise de acumulação de “riqueza abstrata” é a intensificação da utilização destrutiva dos recursos naturais na produção de grande quantidade de mercadorias para compensar a "desvalorização do valor" e manter níveis de rentabilidade aceitáveis com um volume maior de mercadorias produzidas. Ou seja, com a crise do valor, as empresas capitalistas precisam produzir mais para compensar a queda da lucratividade. E para produzir mais precisar aumentar a produtividade para fazer frente à concorrência, tornando ainda mais supérflua a força de trabalho. Essa lógica cega tende agravar a crise da forma de produção capitalista. A incapacidade dos analistas econômicos de ultrapassarem certos limites com suas análises e de só ficarem “contabilizando” manifestações da superfície dos fenômenos, pode resultar em grandes equívocos e surpresas.

Fala-se em recuperação da economia e os lucros dos grandes bancos são dados como exemplo. Na verdade o chamado "lucro” dos bancos na conjuntura atual, não passa de capital fictício, desde o dinheiro impressos do nada pelos bancos centrais e repassados aos bancos privados, até o capital fictício gerado por essas instituições em transições especulativas e sem lastro. Portanto, não se trata de lucro no sentindo de apropriação de uma parcela da massa total de mais-valia como era de se esperar do capital que rende juros. Esse "lucro fictício", que necessariamente desemboca em abalos financeiros, transforma-se pó do dia para noite as costas dos entusiasmados agentes econômicos e seus conselheiros.

Na medida em que o capitalismo entra em crise sistêmica, fica mais difícil construir instituições capazes de repararem os danos do mercado regulando para evitar os excessos. As existentes tendem a se fragilizarem e serem capturadas pelos interesses econômicos, perdendo sua função moderadora, se isso é possível. No mais recente espasmo da crise de valorização, o abalo financeiro de 2008, enquanto a população era jogada na rua sem emprego e residência, o Estado, através de seus bancos centrais, inundavam os bancos privados e os grupos econômicos com dinheiro, mesmo que fictício. Os partidos políticos não têm, e não poderiam ter, respostas para sair da crise, pois só conseguem agir dentro dos limites impostos pela sociedade capitalista que lhes deu origem. Quando no poder, tentam sem sucesso administrar a crise de forma cada vez mais autoritária para compensar a sua incompetência de lidar com o problema.

A crise do valor, não se restringe a acumulação de capital na economia real, mas é uma crise de toda sociedade produtora de mercadoria, das instituições e da ética burguesa, das relações ditas civilizadas erguidas para lhes dá sustentação e garantir um ambiente adequado à valorização do capital. Mas o novo não se manifesta enquanto não emergir um nível de consciência crítica que liberte os indivíduos da "gaiola de ferro" (Max Weber) e seja capaz de planejar e articular uma nova forma de produção e de organização social que transcenda os limites das fronteiras determinadas pela sociedade capitalista. Por enquanto, no caminho percorrido pela crise, assistimos a intensificação da barbárie e desagregação do Estado.


31.12.2014

terça-feira, novembro 11, 2014

A destruição da natureza e os limites do capitalismo

Rall

A gravidade da crise ecológica, resultado de três séculos de desenfreada destruição da natureza pela lógica cega do capital, que pode levar a vida na terra ao colapso, se expressa de forma contundente em fatos como seca do Sudeste do Brasil, a maior desde quando se mede níveis pluviométricos nesta região há mais de 80 anos.  A destruição da Floresta Amazônica e as de outros continentes pode desarranjar o clima independente do aquecimento global pelo aumento do dióxido de carbono e outros resíduos da produção industrial.

Os estudos que predizem mudanças climáticas impactantes com a derrubada da Floresta Amazônica têm sido recebidos com deboche pelos políticos e pouco considerados por uma sociedade insuficientemente informada sobre a gravidade da questão. Como o aquecimento global frequentemente faz parte da pauta da grande imprensa, as queimadas chamam a atenção não pelo que pode causar a destruição da Floresta, mas pela quantidade de carbono que pode ser jogado na atmosfera assim como o uso de combustíveis fósseis. A importância das florestas como condicionantes do clima local, capaz de garantir vida dentro e fora de seus limites, é desconhecida pela maioria das pessoas. As árvores cortadas por motosserras, desde que não sejam queimadas e possam ser transformadas em assoalhos, mesas, cadeiras e outras mercadorias para o deleite de ávidos consumidores está tudo bem.

Em recente entrevista ao Jornal Valor Econômica em 31.10.2014, o pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), Antônio Donato Nobre, uma das maiores autoridades em Floresta Amazônica, alarmado, fala dos riscos que correm as áreas desmatadas, as imediações da floresta, o Sudeste brasileiro e outras regiões de países vizinhos de se transformarem em desertos se a Amazônia deixar de funcionar enquanto ecossistema que faz parte de um sistema maior regulador do clima. 

Estudos mostram nexos bem estabelecidos entre a transpiração das árvores da Floresta, que jogam mais água na atmosfera do que a despejada pelo rio Amazonas no mar por dia que corresponde a 20% da água doce do mundo, a água evaporada do Oceano Atlântico e empurrada para dentro do continente Sul-americano e o clima em vastas regiões do Brasil e países fronteiriços. Diz o pesquisador: "Uma árvores grande da Amazônia, com dez metros de raio de copa, coloca mais de mil litros de água por dia pela transpiração”, que são jogados na atmosfera na forma de vapor. “Esse ar úmido é também exportado para áreas como o Sudeste, com vocação para deserto”. As chuvas nessa região “que vai de Cuiabá a Buenos Aires, de São Paulo aos Andes e produz 70% do PIB da América do Sul”, dependem desses rios aéreos.

Não há necessidade de aprofundados conhecimentos para sentir que os riscos são reais. Há poucas décadas atrás São Paulo era conhecida como Cidade da garoa (nevoa úmida com chuviscos constantes), cantada nos versos de Adoniran Barbosa e de outros poetas. Os primeiros sinais de que alguma coisa não vai bem com o clima, foi a rarefação desse fenômeno acompanhado de um aumento de temperatura da Cidade. Segundo, eventos antes seculares como secas intensas que culminou com a atual, são cada vez mais frequentes.

A história das mudanças climáticas na terra mostra que as viradas do clima são bruscas, após acumular mudanças quase imperceptíveis muitas vezes por séculos. É possível que o Sudeste e outras regiões brasileiras e de países vizinhos que dependem do clima amazônico, estejam neste ponto de viragem. Talvez seja tarde para evitar que eventos climáticos extremos como esse se tornem frequentes e levem a desertificação.

No entanto, não são os apelos por uma “agricultura consciente” que vão parar os desmatamentos. As mesmas empresas e agricultores que sofrem prejuízos com as secas em consequências do desmatamento na Amazônia, migraram de outras regiões aonde a agricultura deixou de ser rentável pelo esgotamento do solo e mudanças climáticas relacionadas com o regime pluvial em função da destruição da Mata Atlântica. A lógica cega que põem em movimento as motosserras do agronegócio, a mesma que empurra o capitalismo para o seu “limite absoluto” (Kurz), não permite que se enxergue o problema climático da destruição das florestas como também um problema para produção agrícola, mesmo que mais à frente as consequências sejam funestas ao lucro dos negócios. Por outro lado, o Estado omisso é conivente com essa situação e com seus agentes, como mostra os registros da destruição e os mais recentes dados sobre o aumento brutal do desmatamento em 2014, vergonhosamente escondidos às vésperas das eleições.

Só um vigoroso movimento em defesa da vida e da natureza, que leve às ruas a população de fato ameaçada, pode se contrapor a lógica destrutiva do capital. A consciência desse problema começa a ganhar vulto à medida que nas torneiras a água míngua. Mas é preciso que as ruas se agitem para que o que ainda se manifesta como um incômodo no conforto dos indivíduos, se transforme em problema coletivo capaz de mobilizar e desmascarar as mentiras políticas. A luta pela água e preservação da natureza que é uma só, tem enorme potencial mobilizador nas várias camadas sociais.

A luta contra o desmatamento da Floresta Amazônica não se restringe a destruição da maior área de biodiversidade do planeta e ao genocídio dos índios pelos séculos afora, ações criminosas tão graves quanto os crimes de guerra, mas o risco que agora corre uma vasta região do planeta e sua população de sucumbirem às mudanças climáticas catastróficas.

11.11.2014

domingo, setembro 07, 2014

O crédito, as bolhas e a crise do capitalismo

Rall

“Estamos vendo bolhas de ativos em todos os lugares. Os mercados de ações estão em níveis recorde de alta. Bônus livres de risco estão em níveis recordes de baixa. O custo de fazer hedge ou cobertura está em níveis recorde de baixa, como indicado pelo Vix, o chamado 'índice do medo".

“O ponto principal é que, longe de ter havido um processo normal de desalavancagem depois de um grande boom de crédito, os níveis da dívida do setor privado não financeiro estão hoje 30% mais elevado do que estava em 2007. Como proporção do PIB, aumentaram 20%. Longe da desalavancagem, a situação é pior hoje do que estava antes. O segundo ponto é que em 2007 as economias avançadas tinham todos esses problemas, mas podiam olhar para os mercados emergentes como parte da solução. O que ocorreu nos últimos seis ou sete anos nos países emergentes é que, com o boom de crédito que houve lá, eles não são mais parte da solução. Eles são parte do problema. Nesse sentido o problema global se tornou materialmente pior.” (William White).*                                                                                                                                                            
Sete anos após o estouro da bolha que atingiu em cheio o mercado imobiliário e o setor financeiro, resvalando para toda economia, o capitalismo continua sem rumo. A abundância de dinheiro fictício gerado pelos mecanismos de compra pelo Fed de títulos da dívida pública e papéis privados lastreados em hipotecas de créditos podres, transbordou dos países desenvolvidos para os emergentes na forma de capital especulativo, que ao lutarem contra a apreciação de suas moedas mantem os juros baixos, alimentando as bolhas. É no setor imobiliário desses países aonde mais claramente se evidencia a formação de bolhas nos últimos anos. Nos países desenvolvidos a especulação tem se concentrado mais nas bolsas. No entanto, com dinheiro farto, mesmo sem substância, nenhum ativo escapa a formação de bolhas, não importa onde estão ancorados.

Outros sinais importantes da proximidade de novos abalos é o comportamento dos preços nas economias dos diversos países. Enquanto na Europa, Japão e EUA, o esforço dos bancos centrais é para que essas economias não caiam na deflação, o que se observa nos emergentes é exatamente o contrário, a inflação em franca ascensão. Excetuando os EUA, cuja economia se mantém pela política monetária “ultraexpansionista”, que já dá sinais de esgotamento além dos riscos, a maioria dos países europeus e Japão caminham para uma nova rodada recessiva, alguns se debatendo contra a “estagdeflação”, o que tem levado os bancos centrais da Europa e Japão adotarem estímulos monetários mais ousados, inclusive a possibilidade de aumentarem a compra de bônus soberanos. No outro lado do mundo o que assombra é estagflação, com muito desses países entrando em recessão com inflação alta, como o Brasil, outros já tecnicamente quebrados, como a Argentina. O que aparenta ser contraditório, inflação e deflação, na verdade são manifestações de um mesmo fenômeno: da crise de acumulação do capital e dos efeitos colaterais resultantes de medidas monetárias expansionistas com as quais pretende-se conter a crise.

Com a circulação de dinheiro fácil e barato gerado nos bancos centrais quando compram em grande escala dívidas públicas e privadas, visando aliviar as empresas do excesso de alavancagem e financiar os estados, o que se viu de 2007 para cá foi um aumento global das dívidas do setor privado, incluindo-se aí as famílias, e a explosão das dívidas dos estados. Em 2007 quando se iniciou o estouro da bolha de ativos, principalmente de imóveis, houve paralização temporária do crédito. Mas, facilitado pelas rodadas de "afrouxamento quantitativo" e juros basicamente negativos, o crédito se recompôs rapidamente e prosseguiu sua trajetória ascendente, seja no setor público ou privado. Não podia ser diferente num cenário aonde a economia real não consegue gerar valor e o único meio de manter as coisas como estão é simular a acumulação da riqueza abstrata produzindo capital fictício e antecipando, pelo crédito, a realização de mais-valia futura, cuja possibilidade de formação é remota.

No entanto, apesar de crescente a oferta de crédito é desigual no tempo e espaço. Nos EUA aonde a alavancagem das empresas chegou a patamares muito altos, houve certa contenção pela freada brusca da economia e paralisação dos investimentos, mas não pelo estabelecimento de uma nova lógica capaz de inverter esse processo como vaticinavam alguns analistas. Nos países em desenvolvimento, aonde o endividamento era considerado baixo quando comparado  com os países do centro, o crédito cresceu rapidamente nos últimos anos sob pressão dos fluxos de capitais externos e pela redução dos juros internos a níveis antes não atingidos, muitas vezes como meio para se protegerem das ruínas do capital especulativo. Podemos afirmar que no capitalismo em seus estertores, o crédito tende crescer ao infinito, e na outra ponta as dívidas, na medida em que se intensifica a crise do dinheiro enquanto expressão da crise do "trabalho abstrato" e do valor, ao contrário do que deseja os defensores da desalavancagem. As bolhas de ativos aí formadas, que se expandem proporcionalmente as montanhas de dívidas que vão se acumulando, tendem a ser mais destrutivas quando explodirem a medida que a crise avança(1).

Por outro lado, a contabilidade dessas dívidas transformou-se num emaranhado inextricável, parecido com uma peça de ficção sem começo nem fim, cuja complexidade ininteligível só aumenta aos olhos de espectadores atônitos. As saídas para crise formuladas a partir de reformas estruturais das economias, tão vigorosamente defendidas pelos que criticam o monetarismo puro, como a liberalização do mercado de trabalho e de produtos, tem fôlego curto e não são capazes de salvar a penca de bancos e empresas zumbis espalhadas pelo mundo que se mantém em pé alimentadas por dinheiro fictício. Com a revolução tecnológica impulsionada pela feroz competição que tende aumentar com o baixo crescimento, baratear a força de trabalho via liberalização do mercado de trabalho não faz diferença, mesmo porque o desemprego estrutural que cresce com o aumento da produtividade já faz esse serviço com eficiência.

Os conflitos regionais, subproduto da crise e da disputa de poder entre as grandes potências, onde a barbárie sem limites é venerada por atores sectários, e os duzentos milhões de desempregados que rondam o mundo, retroalimentam a crise geral da sociedade capitalista que não é só econômica, mas social em sentido amplo. Os riscos de uma depressão que possa atingir profundamente a economia global cambaleante e as finanças do Estado, impossibilitando manobras artificiais como o "afrouxamento quantitativo" e outras formas de gerar dinheiro fictício que busca adiar o colapso da valorização ao transfundir a economia, são reais. As evidências mostram que a crise tende aumentar, esgarçando o tecido social e as instituições que lhe dão sustentação, pondo em risco a convivência entre humanos se não for possível o surgimento de uma consciência social crítica, suficientemente abrangente, que questione o capitalismo e enseje sua abolição.

*William White, ex-economista-chefe do Banco de Compensações Internacionais (BIS) e presidente da Comissão de Revisão e Desenvolvimento Econômico da OCDE, em entrevista ao Jornal Valor Econômico, SP, em 21/07/2014.

(1) O segundo grande espasmo da crise

07.09.2014

sábado, maio 24, 2014

A automatização da produção e a lógica do capital

Rall 

Pesquisas e trabalhos publicados nos centros econômicos descobrem tardiamente que a automatização da produção além do aumento da produtividade fecha postos de trabalho que não voltam mais. Mas as análises são incompletas e limitadas pela visão de mundo dos analistas.


A imprensa dos centros econômicos tem-se mostrado agitadas com as pesquisas e publicações sobre o impacto dos avanços da microeletrônica e da informática na produção e na substituição do trabalho humano por máquinas. Fala-se tardiamente na destruição de milhares de empregos em todo mundo, atingidos por um “furacão tecnológico" que, ao agregar em seu exponencial vórtice várias inovações, potencializa a automação em todos os setores da economia. De fato, recente estudo nos EUA englobando 702 profissões, realizado pelos pesquisadores Frey e Michael Osborne da Universidade de Oxford, mostrou que quase metade dos trabalhadores americanos (47%) devem perder seus empregados em poucas décadas com a automação da produção e de atividades cognitivas.

Outra dupla de professores, Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, discutem em livro publicado recentemente, de mesmo título, uma "Segunda Era das Máquinas". No que chamaram "A Primeira Era das Máquinas", que teve início nos primórdios da Revolução Industrial, a força humana é potencializada na produção pelas máquinas a vapor e em seguida pelas máquinas movidas à combustível fóssil. Máquinas e homens aí se complementam, aumentando a produtividade.  Na Segunda Era das Máquinas, argumenta Brynjolfsson, "nós estamos começando a automatizar muito mais tarefas cognitivas, muito mais sistemas de controle que determinam como usar aquela força. Em muitos casos as máquinas de inteligência artificial podem tomar melhores decisões do que os seres humanos. Assim, seres humanos podem cada vez mais ser substituídos por máquinas guiadas por software, não se complementarem. O que torna isso possível são três avanços tecnológicos imensos que acabaram de chegar ao seu ponto de virada, avanços "exponencial", digital e combinatório." Ao contrário da Primeira Era,afirma, onde uma máquina podia levar até 70 anos para duplicar seu potencial produtivo, na Segunda não leva mais que dois anos.

Por outro lado, a queda nos preços das máquinas e dos juros nas últimas décadas, alimenta um novo cenário para o capital fixo. Bem recentemente a automação dos processos de trabalho, tinha como limite os preços, o que a restringia a grande indústria. No entanto, como as mudanças na produção estendem-se também à manufatura de máquinas e softwares que produzem  máquinas inteligentes e equipamentos para automação, observou-se um significativo declínio dos preços do que é produzido por essas indústrias. As ferramentas necessárias à automação dispensadora de trabalho humano, vêm tornando-se rapidamente acessíveis as pequenas e médias empresas, que até recentemente tinham dificuldade em adquiri-las.

Tidas em todo globo como o bastião da força de trabalho ainda não tornada supérflua, no Brasil, as pequenas e médias empresas, segundo dados do Governo, apesar de representarem só 20% do PIB, são responsáveis por 60% dos empregos no País. Financiamentos a longuíssimo prazo para investimentos em equipamentos e softwares, muitas vezes com juros subsidiados, atraem empresas sob pressão do mercado para reduzir custos de produção e aumentar a produtividade. Quando sob a influência dos fundos de investimentos  essa pressão torna-se mais acentuada na busca do lucro rápido. Parece que estamos próximos a assistir uma grande onda de fechamento de postos de trabalho em extensos setores da economia, bem maior do já vem acontecendo na esteira da revolução da microeletrônica, principalmente naqueles antes pouco afetados como reconhecem os pesquisadores.

No entanto, a discussão na mídia sobre esse novo momento, onde a ciência é mobilizada em toda sua potência pela concorrência global entre empresas e nações para atuar na produção com inovações tecnologias, limita-se a apontar soluções já mortas no nascedouro, como "os trabalhadores devem estar preparados para constantemente reciclar seus conhecimentos e buscar novas oportunidas", de certa forma jogando para estes a responsabilidade da miséria que os ronda,  ou palavras de ordem vazias como "escravizem os robôs e libertem os pobres", numa demonstração que na cega corrida pelo dinheiro, ao aproximarem-se do precipício que pode levar a um desastre social e ecológico que afete a todos não sabem em que se firmar. Quando se evidencia a possibilidade da renda dos trabalhadores cair com o desemprego abaixo de um mínimo socialmente aceitável levando a uma distribuição de renda mais desigual do que já é (Martin Wolf), vislumbra-se a possibilidade de uma renda mínima para os desafortunados garantida pelo Estado, como se o financiamento deste não fosse afetado ou deter-se poderes mágicos capaz de gerar dinheiro indefinidamente do nada sem consequências.

O discurso da produtividade e da competitividade como a solução de todos os males, mesmo assustando com o rescaldo social resultante, esquece ou desconhece que, ao aumentar a produtividade pela utilização de novas tecnologias dispensadoras de força de trabalho, incorpora-se cada vez menos "trabalho abstrato" à produção de mercadorias, reduzindo a substância do valor e, consequentemente, a acumulação de "riqueza abstrata" (dinheiro, como forma material de existência do valor) que é o fundamento do capitalismo. A tendência do capital procurar reduzir o tempo de trabalho ao mínimo, substituindo trabalhadores por máquinas, apesar de mantê-lo como única medida e fonte de riqueza (“contradição em processo”, Marx), leva a economia real gerar "riqueza abstrata" insuficiente apesar do aumento da riqueza material. Acompanha o catastrófico desemprego daí resultante, a crise de financiamento do Estado que depende para funcionar da valorização do capital e de parte da mais-valia total, recolhida na forma de impostos e taxas. Apelar para o Estado para mitigar a crise social tem, portanto, seus limites. Na relação conflituosa entre o "abstrato e o concreto" na produção de mercadorias, assenta-se a base do endividamento do Estado, das empresas e dos indivíduos; da especulação, da formação do capital fictício e das crises.

A sociedade capitalista, em seu automatismo, não consegue e nem pode apresentar soluções para esse impasse sem negar a lógica intrínseca que a movimenta relacionada com o valor, a mercadoria e o dinheiro, que independe das ações conscientes dos indivíduos. Daí a impossibilidade dos atores econômicos e gestores de políticas públicas, submetidos ao "automovimento das coisas", ultrapassarem os limites lógicos de funcionamento da sociedade capitalista ao formularem soluções na busca de governabilidade dos fatos, apesar das análises aparentemente "corretas". Se tivessem o domínio da situação não haveria incertezas e crises. As propostas resultantes das análises macroeconômicas de correntes diversas restringem-se a medidas que, no fim, alimentam a formação de capital fictício como forma de suprir as dificuldades da acumulação real estagnada, tornando as crises financeiras uma possibilidade permanente e constante no dia a dia das pessoas, e não solucionado a situação daquelas que se tornam supérfluas à produção robotizada. Não poderia ser diferente em uma sociedade onde atender necessidades é um meio e o dinheiro é o último, se não único objetivo de um "processo de produção que governa os homens” (Marx).


24.05.2014

sexta-feira, março 07, 2014

Os limites da resistência à crise na Ucrânia

Rall

A crise do capitalismo atinge inexoravelmente os países em desenvolvimento e manifesta-se das mais variadas formas. Ucrânia, Venezuela, Egito, Síria, Filipinas, Turquia só para citar os mais recentemente acossados por manifestações e guerras com bandeiras diversas, apontam para Continentes inteiros em desespero. Porém, as massas saem às ruas e mantém as lutas nos limites de sempre. Não são capazes, por mais justas que sejam as reivindicações, de romper o círculo vicioso de derrubar governos e eleger outros que repetem as políticas econômicas e sociais dos antecessores e geralmente agem com mais severidade na administração autoritária da crise. Apesar dos sacrifícios, que às vezes desemboca em guerras civis sangrentas, a irrupção dos movimentos sociais não consegue frear o aprofundamento da barbárie da forma como vem se dando os enfrentamentos. Podemos dizer que as mudanças no poder terminam se voltando contra os desejos das ruas, cujas reivindicações não ultrapassam os limites do imediato(1).

Portanto, vivemos um estranho momento de lutas intensas, com os aparentes avanços sempre retornando ao ponto de partida ou recuando aquém desse. Os movimentos sociais não conseguirão se libertar da armadilha política que domina o cenário da crise do capitalismo global, se mantém como objetivo das lutas a distribuição da cada vez mais escassa “riqueza abstrata”. Nos países onde governos foram derrubados, assistimos com raras exceções, os “movimentos” degenerarem em grupos em conflito, muitas vezes armados, que competem pelo espólio do que resta desta riqueza. E não se vislumbra nada diferente mesmo onde são considerados consequentes por todos os credos.

Parece que quanto mais o capitalismo expõe seus limites, o desespero no enfrentamento das ruínas reforça a lógica deste por outros meios. É o que de fato temos assistido quando os movimentos, despontando mundo a fora, abalam o poder e até mudam seus atores para que tudo continue como estar. Esse quadro se complica mais ainda com a ingerência direta ou indireta das potências militares que, aproveitando-se do caos, buscam interferir para manter sua influência ou garantir os negócios econômicos. A Ucrânia pode ser rasgada ao meio, formal ou informalmente, para assim acomodar interesses do capitalismo mundial e receber o dinheiro que precisa para evitar a falência. A Europa, que depende do gás da Rússia e do Território ucraniano para o seu transporte, vai exigir de Kiev uma acomodação com seu vizinho e fechará os olhos a ocupação Criméia pelos russos. O resto é encenação.

É possível que a resistência ucraniana, como muitas outras, sinta traída sua “revolução”. Mas que revolução? A troca de gestores da crise simpáticos aos russos por outros aparentemente simpáticos à União Europeia que oferece bilhões de euros em troca de sacrifícios da população? Se o resultado for esse não se pode falar em revolução. Enquanto os movimentos sociais não enxergarem que a crise do capitalismo, que se manifesta de forma assimétrica, porém permanente é uma crise de suas categorias fundamentais, e que uma verdadeira revolução haverá de exigir uma crítica radical a essas categorias (trabalho abstrato, mercadoria, valor, dinheiro, mercado, Estado, patriarcalismo), nada mudará. Isso exige dos movimentos organizados a produção de uma consciência crítica e certa autonomia em relação às instituições burguesas, principalmente aos partidos políticos. No entanto, o que se observa é a captura desses movimentos pelos partidos da ordem e poucos resistem aos acenos do poder estatal, mesmo que lá nada consigam fazer.

Nesse momento da história do capitalismo, a contradição entre “riqueza abstrata” (dinheiro) e riqueza material e imaterial (coisa úteis) chegou ao limite máximo. Para compensar a crise do trabalho abstrato, do valor, o capitalismo global é obrigado inundar o mundo com mercadorias que logo são descartadas. Muitas delas de pouca ou nenhuma utilidade, rapidamente transformam-se em lixo com os resultados desastrosos para o Planeta Terra, levando a crise ecológica com repercussões gravíssimas no mar, no ar, na terra e no clima, e os riscos a todas as formas de vida. A concorrência, que se intensifica ferozmente com a trajetória da crise do valor, condiciona o aumento da produtividade e a apropriação da maior fatia da mais-valia social pelas grandes corporações detentoras de alta tecnologia. A estruturação das “cadeias de valor globais”, aonde os grandes monopólios ocupam posição privilegiada, além do desemprego pela crescente automação da produção resultante da introdução de novas tecnologias, força o aumento da produtividade do trabalho à exaustão e o desemprego nas pequenas e médias empresas, pela “apropriação predatória da mais-valia em cima das firmas mais frágeis” (François Chesnais) que funcionam como fornecedoras das grandes corporações, agravando ainda mais a crise do valor.

Para o sistema não entrar em colapso com a paralisação definitiva do processo de valorização, o dinheiro passa a gerar mais dinheiro fora das cadeias produtivas e sem a mediação da mercadoria força-de-trabalho: A fórmula D-M-D’, onde a mercadoria força-de-trabalho produz o Δd, ou seja, a mais-valia, e deveria encerrar toda essência do capitalismo, passa a fórmula vazia D-D’, expressão da sociedade burguesa em nossos tempos. O capital fictício assim formado (D-D’) movimenta-se sem controle nos mercados à velocidade da luz para especular e crescer, mas também para esconder sua face ilusória e não ser descartado nos momentos de agudização da crise. Entra e saí da economia real aonde se recicla ao movimentá-la, ou a deixa a míngua quando se vê ameaçado, como hoje assistimos em vários países, com destaque para Ucrânia, Venezuela, Turquia e Argentina.

A busca da superação da crise, que é também a busca pela emancipação entendida como superação da sociedade fetichista, exige que a resistência à crise organize-se e direcione sua energia no sentido de ultrapassar os limites dos cenários impostos pelo capitalismo e pelas instituições que lhes dão sustentação, inclusive ultrapassar as fronteiras nacionais como já o fez há muito o capital.

(1)Olhando para os eventos no Egito em busca de reflexões

07.03.2014

quarta-feira, janeiro 15, 2014

Não há prisão que mude o rumo das coisas

Rall

Com a concretização da prisão dos condenados pelo chamado escândalo do mensalão, forma de pagamento dos políticos por fora pelo poder público ou pelos grupos privados com interesses específicos, tão antiga quanto às instituições parlamentares deste País, causou certo encanto e, consequentemente, a ilusão de que era possível fazer alguma coisa para mudar essa realidade.  Fatos recentes como a prisão de um grupo de fiscais da Prefeitura de São Paulo, seguida de revelações dos vários caminhos percorridos pelo dinheiro da corrupção, mostra que nada mudou.

Prisões e julgamentos que tem acontecido em casos como esses, tem animado alguns grupos que levantam a bandeira da moralidade pública e da necessidade do Estado se reformar para de fato ser o provedor do “bem comum”. Apesar dos discursos inflamados e das boas intensões (o inferno está cheio, já se dizia), os obstáculos vindo de todos os lados, principalmente dos partidos políticos, são enorme para qualquer tentativa de reforma do Estado que torne mais transparente à contabilidade das entradas e saídas dos recursos públicos. Isso por um motivo muito simples: o dinheiro é o fim último que move automaticamente do mais pacato ao mais ousado cidadão na sociedade capitalista, e os meios para adquiri-lo são cada vez mais suspeitos.

Esse quadro tende a se agravar nos momentos de agudização da crise de acumulação pela qual passa o capitalismo.  As dificuldades de “valorização do valor” (Marx) na produção real leva o dinheiro circulante ser cada vez mais desprovido de sua substância, o “trabalho abstrato” (Marx). O dinheiro que em movimento não mais aporta em sua totalidade na produção real por falta de rentabilidade, busca espaços no mercado mundial e nos estados aonde seja possível à multiplicação. Utiliza-se para isso de artifícios financeiros como especulação, bolhas, pirâmides, ou simplesmente é impresso em volume já mais visto pelos órgãos garantidores, os bancos centrais, sem nenhuma relação com a riqueza material produzida.

O dinheiro sem substância assim gerado (capital fictício), é uma espécie de anti-dinheiro que ao juntar-se com o dinheiro que expressa o “trabalho abstrato” realmente efetivado a partir da produção real, tende, à medida que essa mistura explosiva cresce, acelerar a crise do “modo de produção baseada no valor” (Marx) com os sucessivos colapsos financeiros, acompanhados de grandes desvalorizações do dinheiro, impactando negativamente na economia real. Dos anos 80 até os tempos atuais, quando o capitalismo parece ter atingido o “limite interno absoluto” (Kurz) em função da Terceira Revolução Industrial racionalizadora de força de trabalho pela automação da produção, assiste-se uma sucessão desses colapsos e grandes destruições na economia e de vidas.

Mas, como a produção de mercadorias pela economia real, que pode ser dirigida para atender ou não necessidades humanas, precisa ser mantida e expandida para que a paralisia da produção não leve o capitalismo a falência total, parte do dinheiro sem substância é, pois, aí reciclado sem produzir mais-valia suficiente para valorização do capital. Mas, como a finalidade última da produção não é satisfazer necessidades e sim gerar mais dinheiro, os gestores da economia só veem como saída novas disponibilidades financeiras para cobrir os déficits seja do Estado que para se financiar depende da valorização em crise, seja para o consumo das famílias e das empresas. Para isso crédito é facilitado com juros baixos e alongamento dos prazos; através da formulação de novos produtos financeiros pelo mercado, bolhas são estimuladas e os governos continuam se endividando, permitindo uma liquidez alta com o objetivo de manter a produção de mercadorias sem limites. Portanto, instalou-se um círculo vicioso que tende a empurrar os mercados e os governos a criar num crescente, mecanismos que aumentam o volume de capital fictício para compensar a desvalorização em alta.

Só o Banco Central dos EUA, além dos juros negativos, vem imprimindo pondo em circulação 80 bilhões de dólares por mês, sem nenhuma relação com o que é de fato produzido para estimular o consumo e a produção. O imenso aporte de recurso disponibilizado pelo Estado no início da crise financeira em 2008 tinha-se mostrado insuficiente. Frear o crescimento econômico como querem alguns ambientalistas e teóricos de um capitalismo menos compulsivos, é como cortar a jugular do capital, o que seria uma contradição em termos para os que defendem essa posição, mas são incapazes de formular uma crítica radical a esse modo de produção.  

Apesar da reação recente da economia americana tida como positiva, vem de analistas insuspeitos ao sistema (Summers, Krugman e outros) a retomada da hipótese de “estagnação secular” dos países desenvolvidos, em particular dos EUA e Japão. Essas análises, muito relacionadas com as dificuldades de recuperação do mercado de trabalho, não explicam porque as economias estagnaram. Para isso teriam que por o dinheiro que hoje circula nas diversas formas em seu devido lugar: vê-lo como manifestação do “trabalho abstrato” e, ao mesmo tempo, a obsolescência deste. Tais análises, por descreverem algumas árvores e não a floresta, terminam justificando o aprofundamento das políticas que se ancoram no capital fictício para manter a economia em aparente movimento. Temos como exemplo disso as medidas de intensificação da política de “afrouxamento monetário quantitativo” no Japão e a timidez com que o Banco Central dos EUA fala em reduzir a injeção de dinheiro na economia.

É nesse contexto de crise das categorias fundamentais do modo de produção capitalista, aonde se incluem mercado, Estado e o dinheiro, que devem ser analisados os desvios de recursos públicos para alimentar interesses privados e político-partidários. As ilusões de um Estado diferente, “provedor do bem comum” em uma sociedade produtora de mercadorias, é uma ficção regressiva que pode alimentar desejos autoritários de corrigir os “desvios humanos”(1). A crítica à consciência obnubilada e ao agir do “sujeito automático”, presos ao fetichismo da mercadoria, do capital e das instituições que lhes dão sustentação, para ser efetiva deve ser categorial se se quer alcançar a raiz dos problemas que incomodam. Isso não significa que as reivindicações mais imediatas pela sobrevivência e a ocupação dos espaços das cidades não sejam legítimas. A dificuldade está em articular essas reivindicações à crítica radical da forma-valor, do modo de produção capitalista e do patriarcalismo.     

(1) O mensalão, o Estado e as ilusões da esquerda

15.01.2014