sábado, junho 18, 2011

As possibilidades advindas da crise

Rall

“Apesar da crise, a produtividade do trabalho vem aumentando significativamente em todo mundo. Num primeiro momento, o rearranjo na organização da produção forçada pela dispensa de trabalhadores pode ser responsável por essa maior produtividade. Os não dispensados passam a produzir mais, exercendo funções dos demitidos, sem que haja ajustes salariais. ...Mas é a segunda onda de aumento da produtividade, movida pela feroz concorrência pelo que restou de mercados, que ao incorporar novas tecnologias de automação fechará mais ainda postos de trabalho”.(1)  

No momento mais agudo da crise, as empresas dos países mais atingidos, principalmente as dos EUA, readequaram a produção a um número menor de trabalhadores do que o necessário aos processos de trabalho. A quantidade dos demitidos foi superior às reais necessidades da produção naquele momento. A prova disso foi que a produtividade medida nos EUA deu um salto sem que nenhuma nova tecnologia ceifadora da força de trabalho fosse introduzida. Infere-se que os trabalhadores não demitidos passaram a fazer o trabalho que antes era distribuído por mais de um, aumentando a produtividade através da aceleração de suas atividades nas linhas de produção e extensão da jornada de trabalho. Excetuando-se alguns países europeus, em particular a Alemanha que com o apoio dos sindicatos utilizou mais a redistribuição da carga horária e a redução dos salários, nos países em que as empresas optaram pelas demissões, reproduziu-se, em maior ou menor proporção, a mesma situação.

É esse um dos “segredos” da capitalização das empresas americanas e de outros países em plena crise. Claro que a isso vem se somar outros benefícios como os incentivos via redução de impostos, juros negativos, compra de papéis podres pelos bancos centrais e os espaços garantidos para especulação dentro e fora do país, através das máquinas geradoras de capital fictício. Com dinheiro sobrando, apesar da crise e da redução das transações no mercado internacional, as empresas do centro do capitalismo buscam se reposicionar para enfrentar a acirrada concorrência internacional, principalmente as pressões vindas dos chamados emergentes que conseguem preços competitivos para os seus produtos pelos baixos salários que ainda pagam aos trabalhadores.

Como o aumento da produtividade pela sobrecarga de trabalho chegou ao limite, qualquer aumento da produção ou vantagem competitiva, vai exigir das empresas contratação de mão-de-obra ou investimentos em inovações tecnológicas. Vejamos o que diz Dan Mishek, diretor da Vista Technologies, em Minesota, Estados Unidos: “tudo deve ser tão automatizado quanto possível. Não podemos nos dar o luxo de competir com países como a China no quesito custo de trabalho, especialmente quando os trabalhadores se tornam cada vez mais caro” (do artigo: Empresa americana investe em máquina, não em gente. Folha de S. Paulo, 11.06.2011). De fato, os investimentos em softwares e equipamentos vêm crescendo significativamente nos EUA, e não pode ser diferente noutros países, inclusive nos emergentes, facilitado pelos incentivos fiscais, excesso de liquidez, juros baixos, prazo para crédito a se perder de vista e queda nos preços de equipamentos para automação e softwares.

Dois anos após o ápice da crise de 2008 o processo de contratação nos EUA continua lento. A taxa de desemprego em torno de 9,1% salta para casa dos 16% quando são considerados nas projeções os que desistiram de procurar emprego. Segundo o Departamento de Comércio americano, o total de gasto com empregados cresceu 2% e com equipamentos e softwares 26%, fenômeno observando só uma vez após a recessão de 1982, momento de grande impulso da Terceira Revolução Industrial. Isso é um indicador de que a revolução da microeletrônica, dispensadora de força de trabalho, está longe de seu esgotamento. Não é á toa que o debate sobre o desemprego estrutural, antes adormecido pela ilusão do pleno emprego sustentado pelas bolhas, surge com muita força nos meios de comunicação. Existe quase um consenso entre os analistas, mesmo entre os que acreditam numa recuperação plena da economia mundial(2), de que o mundo não voltará aos níveis de emprego observado antes do estouro da bolha imobiliária, quando considerado o balanço geral.

É possível que o salto tecnológico e de produtividade que começa a tomar forma, mude definitivamente os rumos da história. Diferentemente de 1982 quando ainda encontrávamos governos que exercitavam certa proteção sobre mercado interno (a China e o Brasil são claros exemplos desse período), e que a globalização sustentada no enorme aparato de comunicação e automação que vivenciamos ainda engatinhava, hoje, esse movimento rumo as tecnologias científicas que aumentam a produtividade tende a se difundir com força em todos os sentidos da economia global. Nos países mais atrasados, que buscando tornarem-se viáveis não deverão ficar fora desse processo, o impacto no emprego com o fechamento de postos de trabalho será enorme quando seus parques industriais de baixa densidade tecnológica começarem a ser substituídos ou simplesmente desaparecerem. A produção que se sustenta no uso intensivo de força de trabalho e ainda consegue ser competitiva pelos baixíssimos salários pagos, deverá reestruturar-se com investimento em capital fixo e em inovações tecnológicas ou ficará fora do mercado. Não haverá escapatória e nenhum país conseguirá sobreviver fechando-se em si mesmo.

Vivemos num momento rico que merece uma atenção especial, onde observamos a conjunção de tremendas forças que empurrarão o mundo na direção de mudanças importantes: ondas de choque resultantes do estouro das bolhas percorrem o globo, represando-se aqui e acolá, ameaçam com novos tremores tectónicos romper o dique e produzir estragos significativos; nas economias nacionais, a procura de saídas para crise utilizando-se de tecnologias que possam aumentar a produtividade para fazer frente à concorrência global. As duas situações devem agravar mais ainda o desemprego e a queda da “valorização do valor”. O leque de opção para a saída da crise no campo do capitalismo deve estreitar-se enormemente. É possível que se crie condições de rompimento do círculo de ferro que nos aprisiona e paralisa, e nos dirijamos para construção de uma sociedade solidária, onde possamos ter mais controle sobre os produtos de nossas ações que no capitalismo transformam-se em monstros enlouquecidos prontos a nos devorar. Há o risco também de não encontrarmos saídas que ultrapassem os limites da lógica destrutiva da sociedade produtora de mercadorias e nos afundemos mais ainda na barbárie.           

(2) O pior já passou? Um "sim" ecoa afoito no mundo dos negócios


18.06.2011                  

quarta-feira, junho 01, 2011

A morte melhorada de uma velha senhora

Rall

Nasci numa pequena Cidade do interior, cuja autoridade sanitária era o farmacêutico com seus conhecimentos práticos adquiridos na compra e venda de medicamentos. Nos feriados, visitava com certa regularidade a Cidade, um médico militar proprietário de alguns alqueires de terra nas imediações. Contavam os antigos, que tinham como referências para o tratamento dos encharques da família o farmacêutico, que o referido médico gostava, vestido em seu fardão, de percorrer a pé as estreitas ruas distribuindo receitas como se estivesse dando ordens a um batalhão. Nos feriados seguintes, que não eram muito distantes um do outro, aparecia querendo saber como estava sendo cumprido o que foi determinado. Mesmo não havendo melhora, a tendência das famílias era dizer que o doente, muitas vezes até pior, tinha sarado para evitar a ladainha que viria em seguida acusando-as de não ter administrado adequadamente a medicação.

Certa vez, uma família em desespero, resolveu confiar aos conhecimentos do médico militar a saúde de um de seus membros, apesar da insistência do arguto farmacêutico de que a medicação prescrita poderia não ser adequada para aquele caso. Semanas seguintes, o médico grato pela confiança da família foi visitar o paciente, e aí encontrou os parentes na calçada onde ocorreu o seguinte diálogo: “e então, minha paciente já levantou”?  “Não doutor, não levantou!” “Já sei, não administraram o remédio...” “Compramos e foi dado como o senhor mandou, só que ela morreu”. “Mas morreu melhorada”, respondeu o médico que seguiu em marcha acreditando que seu ato tinha servido para alguma coisa apesar da morte da velha senhora.

As medidas tomadas pelas autoridades financeiras na tentativa de superar a crise lembra-me sempre essa história.  À doente terminal, a economia capitalista, é injetado todo tipo de droga que se não recupera a moribunda, traz a sensação para os seus prescritores de uma “morte melhorada”. Bolhas são formadas nos mercados financeiros, imobiliários e de commoditeis, com tempo de vida que se encurta e com efeitos colaterais arrasadores. Os estados vergam sobre dívidas impensáveis e com a impressão de moedas, buscam consertar os rastros de destruição deixado pelo estouro das bolhas. O capital fictício, gerado nos mercados e nos estados por esses mecanismos, como o remédio milagroso para sustentar a economia capitalista em crise, não funciona como esperado. Se alguma reação é observada, mesmo que aparente, logo em seguida os efeitos colaterais anulam qualquer possibilidade de recuperação. Vejamos.        

Para não irmos muito longe, vamos nos ater a entrada do Século XXl quando estourou a bolha pontocom. O Fed (Federal Reserve) reage prontamente baixando os juros com a certeza de que a bolha imobiliária que se delineava ganharia a dimensão necessária  e substituiria a da internet em declínio. As bolsas, antes de atingirem o fundo do poço, recuperaram-se e seguiram os passos do mercado imobiliário em ebulição. Sabemos o ar de surpresa dos que acreditavam em novos paradigmas de uma economia que cresceria sem limites e sem obstáculos, quando o impiedoso espasmo de 2008 desfez instantaneamente as ilusões acumuladas. O mercado atônito, não reagiu criando novas bolhas que pudessem substituir em dimensões a do mercado imobiliário. Os preços das commoditeis ensaiaram alçar voo, mas não se sustentaram. A saída foi o apelo desesperado ao Estado, mesmo por aqueles que acreditavam estar no mercado o Lapis Philosophorum que com um simples toque tudo podia ser tranformado em ouro.  

O Estado, que forma com o mercado um conjunto binário inseparável, reagiu prontamente, pois sabia que a morte do seu par era também a sua morte. Como o dinheiro disponível para ser emprestado era insuficiente, o Estado foi obrigado apelar para casa da moeda que pôs suas máquinas em ação, “imprimindo” um volume sem precedente de dinheiro sem substância. Os bancos que conseguiram sobreviver ao primeiro impacto passaram a trocar com o Fed, BCE (Banco Central Europeu) e os outros bancos centrais, os créditos podres por dinheiro vivo e a receberem empréstimos a juros negativos. Por sua vez, parte desse dinheiro volta novamente aos bancos centrais, quando os bancos, num movimento inverso, compram papéis das dívidas dos governos, agora remunerados a juros positivos.

São várias as consequências desse jogo esquizofrênico. Chama atenção, como já referido, a simulação de lucro quando os bancos tomam emprestado dinheiro dos bancos centrais a juros negativos, e reemprestam parte desse dinheiro a juros positivos aos mesmos bancos centrais. Aí, os juros não são parte da mais-valia como era de se esperar numa economia capitalista, mas dinheiro fictício, gerado nas entranhas do mercado e Estado e justificado com manobras contábeis. Isso mostra a fragilidade do sistema bancário mundial, mesmo considerando ser essa prática mais comum nos EUA, favorecida pela chamada “expansão quantitativa”, nome pomposo dado à impressão de moeda sem nenhuma relação com a produção. Independente dessa generosidade, os estados são grandes tomadores de empréstimos da rede bancária para cobrir os déficits fiscais, já que a parcela da massa total de mais-valia, transformada em impostos, há muito não é capaz de cobrir as despesas correntes.        

O dinheiro farto vindo dos bancos centrais e impresso nos tesouros aumenta a liquidez e é direcionado para especulação nas bolsas, commodities, e tardiamente, ao setor imobiliário dos países emergentes. Uma parcela menor aparece como investimento, reciclando-se na produção. Por outro lado, juros altos e moeda valorizando-se como no Brasil, atrai capital de curto prazo num processo chamado carry trade, onde o dinheiro tomado fora a custo zero entra e sai muito bem remunerado pelos juros e diferença cambial. O excesso de liquidez distribui-se de forma desigual entre os países e está relacionada com a atração que os mercados e os juros locais exercem sobre as moedas estrangeiras, principalmente o dólar, e a política monetária interna. Esse dinheiro excedente, que não contém nenhum átimo de valor, mais tarde ou mais cedo será transformado em cinzas na fogueira da inflação ou deflação.

Além do risco de estagflação que ronda o centro do capitalismo, o agravamento da crise com a insolvência de países europeus ao não suportarem mais o peso da dívida, é real e palpável. A previsão é que a dívida na Grécia chegue a 160% do PIB em pouco tempo; não deve ser diferente nos outros países em situação semelhante que só conseguem dinheiro no mercado absurdamente caro para cobrir os déficits ficais.  Sendo esse o cenário, os bancos europeus serão atingidos em cheio. As ondas destruidoras deverão alcançar bancos da América do Norte. Esse segundo momento de colapso do sistema financeiro pode ser pior do que o primeiro, com o agravante de que as medidas tomadas pelos bancos centrais após a falência do Lehman Brothers encontram-se esgotadas. A outra ponta utilizada para que o mundo não afundasse em uma depressão, as medidas anticíclicas que garantiram aos países emergentes retomarem o crescimento, serão muito mais difíceis num momento em que estes desaceleram para controlar a inflação. Mesmo assim há sinais de que as medidas de arrocho não tem surtido o efeito esperado, apesar dos discursos oficiais otimistas.

Saindo da superestrutura financeira e penetrando na economia real, veremos que é aí que mora o problema. Depois da Segunda Guerra Mundial, a expansão fordista só foi possível com o endividamento do Estado, das empresas e das famílias, apesar da expansão do mercado de trabalho. Nos anos oitenta, com a revolução tecnológica, acelerou-se a automação das atividades industriais, do campo com a mecanização do plantio e da colheita, e, mais tardiamente dos serviços, tendo no setor financeiro o exemplo mais marcante. Portanto, forçada pela concorrência, a produtividade do trabalho dá um salto gigantesco com a “cientifização” da produção. Começa então a estagnação do mercado de trabalho e o declínio do trabalho produtivo com o desaparecimento de antigas atividades agora incorporadas as máquinas e com novas formas de organização do processo de trabalho, repercutindo na formação da mais-valia total, e, consequentemente, na acumulação de capital e no financiamento do Estado.

Vários foram os espasmos da crise antes de 2001, quando entrou em colapso a indústria do pontocom. Cada doloroso momento de destruição foi seguido da expansão do crédito em todos os segmentos do capitalismo global: às empresas, forçadas pela concorrência, para aquisição de novas máquinas que aumentassem a produtividade, aos estados para cobrir os déficits fiscais e às famílias para manter o consumo em alta. Como não existia dinheiro real para sustentar tudo isso, a saída foi expandir o crédito ao infinito, desencadeando uma pirâmide financeira coletiva de financiamento e refinanciamento de dívidas, e desatar os nós que dificultavam a geração de capital fictício. Vieram então as medidas de desregulação financeira. Ressalve-se, no entanto, que o papel dos legisladores nesse processo foi de avalizar o que o mercado já tinha feito, ou seja, limpar o “entulho” que não se aplicava a mais nada.

Sob os efeitos das bolhas que nesse ambiente pululavam, a economia real iniciou um falso movimento em direção ao desconhecido. Acoplou-se definitivamente ao capital fictício que alimentava o crédito fácil e seguiu sua rota. O capital fictício não era mais uma anomalia do desenvolvimento capitalista que precisava ser purgado nas crises cíclicas, para que a acumulação seguisse seu caminho livre de eventos perturbadores. Ao contrario, a economia real transformara-se gradativamente em apêndice do capital fictício, e passara depender deste como o cristão do batismo. Isso impossibilita qualquer regulação que ponha em risco a formação do capital sem substância. Só os estoques de derivativos supera em dez vezes o PIB mundial e continuam crescendo. 

Mas, como vimos, depois do “efeito riqueza”, as bolhas explodem deixando um rastro de destruição que o mercado acredita reparar com novas formações. Os estados, ao tornarem-se insolventes, podem desabar sobre o peso da dívida. Vivemos um momento singular: no mercado, as bolhas explodindo quase na mesma velocidade que se formam deixam uma terra arrasada sem grandes chances de nela se cultivar alguma coisa. Os estados, no limite do endividamento, apelam para máquina de imprimir moedas, cujo efeito colateral pode ser a hiperinflação com mais destruição. Os pulmões de aço que injetam oxigênio, capital fictício, na economia real moribunda começam a falhar sem que outros mecanismos surjam para substituí-los. A sociedade capitalista, ao contrário da velha senhora, pode não “morrer melhorada” como desejava o médico militar. Pode ser precedida de um interminável sofrimento se não soubermos agir para um desaparecimento sereno que no futuro seja um evento lembrado com alegria e não com saudade do passado.

01.06.2011