segunda-feira, janeiro 25, 2010

O despertar de um inflamado dragão chinês

Rall

O mais festejado país do grupo denominado de BRIC, a China, começa a dar sinais de que o crescimento em pleno espasmo da crise mundial tem pés de barro. Do quarteto, quem de fato tem certo peso na engrenagem da economia mundial é a China e, em seguida bem distante, a Índia. No entanto, não se compara em importância às economias americana e européia, que continuam na lona apesar dos trilhões de euros e dólares despejados pelos bancos centrais. Mas, é na China que a grande esperança é depositada como alavanca que possa movimentar a economia mundial. Grande importadora de commodities, a mágica produtora de mercadorias para o mercado mundial cujos preços finais não pagam os custos de produção em outros países, da China está sendo esperada a reversão do caos econômico instalado e seus dirigentes acreditam nisso.

Tanto acreditam no poder mágico de sua economia que dizem fazer “dançar as cadeiras”, que despejaram até agora 9,590 trilhões de yuans no mercado interno, na “maior flexibilização monetária da história” segundo alguns estudiosos, como forma de compensar a queda das importações americanas, ampliando o mercado interno, e animar a economia mundial. Parte desse dinheiro foi para os bens de consumo de luxo, como automóveis, para infraestrutura que teve investimentos antecipados, para setores produtivos com retorno duvidoso, agravando o excesso de capacidade produtiva, um problema já presente nas indústrias chinesas. Mas, acredita-se que o grosso destinou-se a especulação imobiliária. Em Pequim, nos últimos 12 meses, os preços de imóveis de aproximadamente 65 m², os mais procurados, duplicaram ou triplicaram conforme o bairro. Em outras cidades chinesas a situação não é diferente, e vem sendo estimulada pela venda de terrenos públicos pelas prefeituras para cobrir déficits orçamentários. Estima-se que metades das receitas dos governos locais são geradas das vendas dos terrenos pertencentes ao Estado.

Todos estão querendo aproveitar a onda para surfar ganhando alguns trocados a mais. As empresas, que viram os seus lucros desabarem com a queda das exportações, não conseguindo compensar o mercado externo com a expansão do consumo interno, passaram a desviar dinheiro para especulação imobiliária. A indústria de ferro, cimento móveis entre outras ligadas à construção civil, vêem na bolha que se expande a solução para os seus problemas. O PIB em 2009 teve um crescimento considerado espetacular, 8,7%, acima do esperado pelos analistas e pelo Governo. O mercado global de commodities, sujeito a toda forma de especulação reanima-se, e as bolsas passam a ser o investimento mais lucrativo apesar das dificuldades na produção, principalmente as ações das empresas exportadoras, mesmo aquelas em que as exportações não passam de uma possibilidade.

Mas, quando todos parecem felizes, excetuando os 2/3 de chineses pobres que não conseguem se beneficiar da bolha imobiliária, ouve-se o arquejante rugir de um assustador dragão colérico que parecia adormecido, e costuma dar muito trabalho aos governos no seu despertar. A inflação dos preços aos consumidores que vinha em queda saltou de 0,6 % para 1,9% em novembro. Nos meses seguintes, apesar de algumas variações para baixo, não deixou de subir se comparado com os meses anteriores a novembro. O impacto negativo nos baixos salários dos chineses pobres já se faz sentir, e veio se juntar a massa dos desempregados pela crise que foram obrigados a retorna ao campo para cultivar lavoura em solo infértil em franco processo de desertificação em vastas regiões. Esperava-se, em prazo não tão curto, com a imensa expansão monetária na China e no resto do mundo(1), o retorno da inflação que se acreditava moderada.

O Governo chinês encontra-se num impasse: ou à paulada faz dormir o maldoso dragão antes deste acordar por inteiro, esvaziando de forma “controlada” a bolha com juros altos e redirecionando a política fiscal reduzindo os incentivos, freando o consumo interno com repercussão nada interessante para o mercado global, ou deixa a bolha e o consumo se expandir, até o estouro final sem controle que pode agravar a crise e levar a China e o mundo a uma profunda depressão. Os arranjos keynesianos de “cavar e tapar buracos” para conter a crise, não se mostraram suficientemente forte para reverter o quadro econômico. Antes de completar a tão esperada obra, os monstruosos e insustentáveis déficits fiscais começam a assustar, a inflação dá os primeiros sinais que pode pipocar com força, principalmente nos países onde se mantém a esperança de um crescimento “sustentado”, e os governos são obrigados discutir a reversão das políticas anticrise sem que estas tenham atingido o fim almejado.

(1) Inflação ou deflação, para onde caminha a crise?

25.11.2010.

domingo, janeiro 17, 2010

Haiti, a nódoa escondida do capitalismo mundial

Rall


A miséria que assola o segundo País ao declarar-se independente nas Américas, para se mostrar em sua plenitude, foi necessário um desastre natural de proporções inéditas. Às portas da maior potência capitalista do mundo, estava ali, flutuando no Oceano Atlântico, desacoplado do mercado mundial e esquecido pelo capital por não ser rentável. O Haiti, refugo do capitalismo global, há muito já vinha se desagregando enquanto nação. Um Estado antes apropriado pela família Duvalier, que usava o exército e os terríveis Tontons Macoutes para as mais abjetas formas de violência e exploração da população, garantia certa coesão com o uso do terror, assassinando e amedrontando psicologicamente, pois se difundia junto à população supersticiosa que François Duvalier, o Papa Doc, além de suas tropas genocidas, tinha a seu dispor um exército de zumbis prontos para entrarem em ação em defesa do pai de todos.

Na periferia do mundo capitalista patriarcal, surgem aberrações toleradas pelos países do centro, apesar de aparentarem o contrário, por fazerem parte da ordem mundial necessária à acumulação. Por isso, toda espécie de ditadores, mesmos os mais sanguinários que tem em comum o gosto de serem tratados como pai de todos, foram pouco molestados na história recente. O reino de terror e obscurantismo em que mergulhou o Haiti por décadas, quando começou desmoronar a ordem imposta pela família Duvalier e seus aliados, foi substituído pelo terror das gangues rivais armadas, antes coesas em torno do chefe supremo, a maioria originada no aparelho estatal e nas forças militares em desagregação. Essa situação consolidou-se, quando após a queda de Baby Doc, o ditador filho, as facções começaram a competir mortamente pelo espólio com a mesma violência a que estavam habituadas tratar a população.

Foi necessário um arrasador terremoto para que se descobrisse que o Haiti é aqui. Que tamanha miséria não se encontra só no Continente Africano, igualmente esquecido por não ser rentável, mas também no coração das Américas, nos outros continentes e dentro de cada um dos países mesmo nos ditos desenvolvidos. O furacão que arrasou Nova Orleans expôs com crueza um Haiti escondido nos EUA. A crescente exclusão do mercado global de regiões, países e até mesmo continentes, faz parte da lógica do desenvolvimento capitalista na medida em que a competição pelo lucro faz crescer o capital constante, principalmente pelo o aumento das maquinarias e automações, e reduz propocionalmente o capital variável, ou seja, a força de trabalho que cria valor e mais-valia, pressionando para baixo a taxa de lucro. Por outro lado, em contradição com o crescente potencial das forças produtivas, o universo dos não rentáveis tende a se expandir junto com o consumo improdutivo, impactando ainda mais negativamente na taxa de lucro. Em última instância, o que conta para acumulação real do capital é o trabalho produtor de mais-valia e o consumo produtivo daí decorrente.

Mas quando praticamente inexiste trabalho produtivo, quando a mais-valia futura (uma miragem) não pode ser antecipada através do crédito, quando não é possível alimentar o consumo mesmo que improdutivo para o capital através das chamadas "políticas compensatórias" financiadas pelo Estado, no capitalismo, o resultado imediato é morte pela fome e pelas doenças da miséria. No Haiti, quase um décimo das crianças morrem antes de completar cinco anos. Outros tantos são assassinados fazendo com que a expectativa de vida não passe de 54 anos. O retrato do Haiti, como também dos bolsões de miséria dos países em desenvolvimento, cujos indicadores não são diferentes, tende a se espalhar como uma nódoa, inclusive para os países desenvolvidos, à medida que a crise do trabalho se agrava e a força de trabalho torna-se supérflua. Para libertarmo-nos dos fetiches que nos assombram, temos que aprender a pensar para além dos limites que nos é permitido pela sociedade produtora de mercadoria, afastando-nos dos administradores da crise.

17.01.2010