quinta-feira, novembro 22, 2007

O Império dos Sonhos e o capitalismo de ficção

Rall


Quem não assistiu na mostra Inlad Empire (Império dos Sonhos) de David Lynch corra aos cinemas quando entrar em circuito comercial. Muitos vão ter vontade de sair no meio da sessão ou vão agüentar firme três horas de projeção como se estivesse olhando a vida através de um espelho com lentes de aumento. Fantasia e realidade fundem-se num todo de contornos indefinidos, sem dar direito ao espectador um fio condutor que lhe permita sair do labirinto em que se meteu ao espiar a imagem espelhada de um mundo esquizofrênico.

David Lynch talvez não saiba, mas parodia, entre tantas coisas, as agruras da vida econômica, onde a ficção vira de pernas pro ar a realidade e resolve ela mesma ser o real. Não é à toa que só se fala num mercado que compra papéis, gera novos papéis e vende papéis, num galopante movimento circular de criação de “riqueza fictícia”, uma abstração da abstração.

Quando a economia real é mencionada, parece uma tentativa de se restabelecer a convicção de que alguma coisa palpável ainda existe. Mas, mesmo quando o produto não é papel, ou um arremedo contábil que nada representa, o valor-de-uso, enquanto veículo do valor-de-troca, não tem nenhum valor enquanto objeto sensível se não for capaz de se transformar em riqueza abstrata no mundo das mercadorias.

Na atual sociedade capitalista a utilidade dos objetos já não conta mais ou conta muito pouco, inclusive o trabalho enquanto mercadoria especial capaz de produzir mais-valor. Resulta daí uma engrenagem movida por sujeitos “automáticos” que se por um lado avança destruindo rapidamente a natureza, por outro já não separa mais o lixo tóxico de produtos consumíveis. Tudo pode, não importa quantos morram e quanto de veneno será jogado no meio, desde que o produto final seja uma mercadoria que pintada pela propaganda e marketing com cores para todos os gostos, disfarça seu desejo mórbido ao abraçar o encantado consumidor, transformando-se em dinheiro.

As coisas tornam-se mais absurdas nos mercados de papéis. Uma transação que se iniciou com um ativo-objeto, por exemplo, o financiamento de uma casa que gerou uma hipoteca, pode “derivar” dessa transação uma série de “produtos” financeiros numa infindável cadeia de geração de dinheiro fictício sem nenhum controle, que só se sabe onde se iniciou, mas não onde termina. No pouco tempo em que a economia global opera com derivativos, o dinheiro fictício aí produzido já corresponde a oito vezes o valor do PIB mundial.

Se considerarmos as outras operações nas bolsas de valores, de mercadoria e futuro, no comércio internacional, na especulação imobiliária, nas mais variadas operações de crédito, nas dívidas públicas e privadas onde a cada instante geram-se milhões em dinheiro fictício, é impossível calcular o montante dessa “riqueza” sem substância. Uma aproximada avaliação só acontece, quando nas grandes crises, violentas contrações dessa aparente riqueza expõem a materialidade da economia real que ela esconde. Daí a dificuldade de se avaliar o tamanho da crise imobiliária americana, e seu impacto ao redor do mundo, enquanto todo processo não se completa.

Os problemas que se avolumam, a perplexidade das autoridades financeiras e dos analistas de plantão mostram que a crise só começou, e que os bilhões de dólares (fala-se em aproximadamente um trilhão) posto pelos bancos centrais dos países “desenvolvidos” no mercado para salvar grandes empresas financeiras do colapso, não mudam o curso, no máximo retarda do desfecho final. A tênue linha divisória entre a realidade sensível e a “abstração real” (Marx) do mundo das mercadorias, que se apaga no filme de David Lynch e nos processos sociais fetichisados, pode, nesses momentos, se vislumbrada, renovar a esperança de que a realidade esquizofrênica que nos domina e violenta possa ser superada.


22.11.2007

domingo, novembro 04, 2007

O leite mijo de vaca e a lógica do capital

Rall


Já não basta aumentar o volume de leite com água contaminada como se sabia. Para não azedar rápido, a fórmula do químico consultor de grupos multinacionais inclusive, exige soda cáustica e água oxigenada. Acrescenta-se ainda a branca natureza do precioso líquido soro cultura-de-bactéria, refugo da produção de queijos, e mijo de vaca para realçar o sabor. Eis o leite oferecido pelo mercado em fina sintonia com refinados paladares.

As ridículas declarações da ANVISA (agência reguladora da vigilância sanitária), de que soda cáustica e água oxigenada quando ingeridas no leite não prejudica a saúde, dirigidas para amainar o escândalo e acalmar os consumidores, satisfazem a devida mistura dos interesses econômicos. Mistura que é só a ponta do iceberg da lógica absurda da sociedade capitalista, que pouco importa o que se produz e como se produz, desde que produto final seja uma mercadoria.

Que diferença faz se um país vende armas que alimenta a criminalidade e as guerras fratricidas ou vende produtos orgânicos com selos verdes acenando para o consumidor? Ambos são mercadorias que nas transações permutam-se e no final garantem um acréscimo, um lucro, ou seja, a “valorização do valor” como afirmava Marx. Por isso as empresas de um mesmo país que vendem produtos orgânicos porque tem um mercado à espera, vendem também armas para os extermínios e disseminação da violência com a certeza de que estão fazendo um grande negócio.

A fórmula simples de Marx, D-M-D’ (dinheiro-mercadoria-mais dinheiro), expressa a essência da sociedade capitalista: fazer dinheiro, não importa se os meios para atingir esse fim possam levar a morte de pessoas e a destruição do planeta. É claro que a pressão social faz com que o impulso de fazer dinheiro seja mais liberado ou mais contido nas sociedades produtoras de mercadorias. Mas está aí, presente nas relações sociais. O “espírito animal” (coitado dos bichos), como assim define um certo ministro a louca corrida pelo dinheiro imanente ao capitalismo, invade e domina a todos.

O impulso destrutivo, que se aloja nos mais recônditos do inconsciente na socialização dos sujeitos e move o ser rentável em sua missão terrena, é fruto de relações sociais reais fetichizadas que dominam os homens e só permitem que estes se movam automaticamente dentro das fronteiras pré-estabelecidas pela lógica do capital. Manifesta toda sua potência nos momentos de crise, quando se acentua a concorrência e o sistema torna-se mais irracional, produzindo alimentos que matam, brinquedos que envenenam crianças, remédios que não curam e todo tipo de violência de grupos e institucional.

Os gritos de guerra do nazismo, “pátria ou morte”, ou do capitalismo de Estado que pode ser tão brutal quanto o laissez-faire, “socialismo ou morte”, são ecos de ruídos produzidos por aqueles que com gosto de sangue na boca e sede de poder, movimentam-se nos limites que lhes impõem o capital. É preciso pensar para além da sociedade produtora de mercadorias para sair da crise.


04.11.2007