quinta-feira, junho 20, 2013

Quando as ruas são ocupadas

Rall

As manifestações nas ruas de São Paulo apontam para um distanciamento da forma tradicional de se fazer política. A retumbante vaia, na última segunda-feira, dirigida a um pequeno grupo que portava bandeira de um determinado partido de esquerda, é a expressão de um sentimento de descrédito em relação aos partidos e repúdio a política, sentimento que vai além dos que estavam na manifestação. A percepção de que os partidos, não importa a cor, quando no poder abandonam suas bandeiras transformadoras ou não, e passam a síndicos da burguesia e administradores da crise socioeconômica, girando e manipulando em torno de seus interesses excludentes em relação ao conjunto da sociedade, difunde-se rapidamente principalmente entre os jovens. O movimento que se articula em claro confronto com as formas ardilosas das políticas partidárias, deve estar pondo a velha esquerda em pavorosa ao sentir o mar, que antes navegava e manipulava a vontade, revolto e sem controle.

A credibilidade dos políticos e seus partidos, em baixa há muito tempo, não mais se sustenta com a crise que escancara a impossibilidade desta forma de organização enfrentar novos desafios que exijam respostas  fora das fronteiras da sociedade produtora de mercadorias. O jogo jogado no espectro direita/esquerda sempre se deu nos limites da sociedade capitalista, mesmo considerando as diferenças de atuação. Quando a margem de manobra se estreitou, por ter a lógica interna do capitalismo atingido o limite absoluto, os partidos, que nasceram umbilicalmente ligados a essa forma de produção, com ela entraram em crise. O que observamos nos movimentos sociais que ressurgem, é uma salutar desconfiança em relação a esse tipo de organização e a contestação da sua legitimidade enquanto meio de expressão dos desejos de transformação que assolam o mundo.

É muito comum ouvir-se que esses movimentos não apresentam um projeto claro de mudança. Não poderia ser diferente. Qualquer tentativa de direcionar o movimento para este ou aquele caminho deve ser visto no mínimo com cuidado, pois, sem um amadurecimento, pode desembocar no mesmo beco sem saída dos partidos políticos. A resistência ao desmantelamento dos serviços de saúde, educação, previdência social, transporte etc, que se apresenta como reivindicações pontuais do movimento, pela melhoria da qualidade e mais serviços gratuitos, apesar de insuficiente enquanto crítica social mostra-se mobilizador. No entanto, a crítica radical as categorias do capitalismo deve sim vir acompanhada das lutas, se o que se deseja são mudanças reais, ou ela se esgotará em si mesma, frustrando as expectativas.

Esse é um bom momento para rever-se o equívoco da esquerda tradicional que confunde estatismo com socialismo. Clarear a função do Estado Moderno na sociedade capitalista e a relação deste com o mercado como partes de um todo indissoluvelmente articulado. O Estado teve um papel fundamental na consolidação do capitalismo. Na acumulação primitiva era o Estado que mandava seus exércitos e armadas expropriarem e saquearem. As sangrentas guerras coloniais, tão importantes na expansão global do capitalismo, foram promovidas pelos estados nacionais colonialistas. A  concorrência entre estados/nações pela riqueza disponível que normalmente desembocava e ainda desemboca em guerras, a competição entre empresas, da mesma forma que as lutas do movimento operário, foram os principais motores que impulsionaram os avanços das ciências e a revolução tecnológica, aumentando a produtividade e criando condições para se superar o modo de produção capitalista. Pode se dizer que o Estado foi moldado pelas lutas sociais e até chegou ao Estado de Bem Estar Social em muitos países. Porém, é nos interregnos da bonança que o Estado mostra sua verdadeira face. Na crise atual, nunca houve tanto dinheiro, mesmo que seja fictício disponibilizado pelos estados e seus bancos centrais para os setores privados, enquanto os gastos sociais minguam. E aí não se faz diferença entre países ricos e pobres.

A mobilização, ajudada pela tecnologia de informação e pela repressão policial, mostrou que existe uma energia no ar com potencial transformador e poder de expansão. Porém, movimento para se sustentar vai depender de seus erros e acertos. É difícil traçar caminhos. Os movimentos sociais geralmente ganham dinâmica própria. Isto não quer dizer que não se faça sentir as ações de indivíduos ou, principalmente, de grupos organizados que muitas vezes tentam canalizar a energia mobilizada para seus objetivos. Se não podemos predizer o comportamento dos movimentos sociais, é possível, porém, refletir sobre o que pode levar um movimento refluir. A paciência que as pessoas tiveram ao suportar o trânsito infernal, por exemplo, pode transformar-se em impaciência e resistência. Logo, as passeatas quando banalizadas podem perder apoio e força, desgastando e isolando o movimento da população, que deve ser vista em perspectiva como a grande aliada. Qual o limite? Difícil dizer. É importante buscar outras formas de mobilização e diversificar. Outro problema são as ações que destoam do movimento levadas a efeito por grupos organizados. Tendem ser espetaculares, geralmente com fins bem definidos,  buscando mobilizar a atenção da grande imprensa e de parcela do movimento. As provocações visando desestabilizar e isolar não pode deixar de ser consideradas em qualquer manifestação. O aparelho repressivo é mestre neste jogo.

As manifestações podem se esgotar com o atendimento de reivindicações mais imediatas. Tanto o Estado e seus órgãos repressivos, como o próprio movimento, podem passar a impressão que as questões se resolveram aí. Isso pode ter duas consequências: se as reivindicações foram atendidas e o movimento continua, fica mais fácil justificar a repressão junto à população. Por outro lado, o movimento pode esvaziar-se ao limitar as expectativas às questões mais pontuais, como por exemplo, a redução das tarifas dos transportes coletivos que podem ser atendidas. É preciso transformar as reivindicações das questões que mobilizam em "gancho" para aprofundar a discussão da crise do capitalismo, as sequelas sociais daí advindas, e como ultrapassar os limites do campo delimitado pela sociedade produtora de mercadorias e suas instituições para superar o momento atual. O caminho em direção as reais mudanças que ainda não está dado é longo, exige determinação, paciência e solidariedade.



20.06.2013

Um comentário:

António Maria disse...

Caro amigo,

O problema mesmo é que as massas não se mobilizem por análises, mas sim por causas, necessidades e interesses. Até agora as guerras e as revoluções ocorreram sempre que houve um prémio à vista. Neste momento não há:( Logo, espera-nos mesmo uma fase de destruição imparável da procura agregada, pois a oferta agregada já não consegue responder à demografia e ao maior poder de reivindicação de uma parte imensa do mundo que, felizmente, se foi libertando da espoliação colonial.

A esquerda, toda a esquerda, está tão aflita como as direitas. Simplesmente não sabem o que fazer, para lá de defenderem com unhas e dentes o património, pequeno ou grande, acumulado. A biopolítica em curso dos diversos grupos sociais e de poder restringe-se cada vez mais a objetivos de defesa imediata dos territórios conquistados.

Eu decidi, com alguns mais, encetar um processo de reconstrução partidária. Não sei até onde chegaremos, mas é de momento uma heurística que considero fundamental.

Chama-se Partido Democrata.