sábado, maio 24, 2014

A automatização da produção e a lógica do capital

Rall 

Pesquisas e trabalhos publicados nos centros econômicos descobrem tardiamente que a automatização da produção além do aumento da produtividade fecha postos de trabalho que não voltam mais. Mas as análises são incompletas e limitadas pela visão de mundo dos analistas.


A imprensa dos centros econômicos tem-se mostrado agitadas com as pesquisas e publicações sobre o impacto dos avanços da microeletrônica e da informática na produção e na substituição do trabalho humano por máquinas. Fala-se tardiamente na destruição de milhares de empregos em todo mundo, atingidos por um “furacão tecnológico" que, ao agregar em seu exponencial vórtice várias inovações, potencializa a automação em todos os setores da economia. De fato, recente estudo nos EUA englobando 702 profissões, realizado pelos pesquisadores Frey e Michael Osborne da Universidade de Oxford, mostrou que quase metade dos trabalhadores americanos (47%) devem perder seus empregados em poucas décadas com a automação da produção e de atividades cognitivas.

Outra dupla de professores, Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, discutem em livro publicado recentemente, de mesmo título, uma "Segunda Era das Máquinas". No que chamaram "A Primeira Era das Máquinas", que teve início nos primórdios da Revolução Industrial, a força humana é potencializada na produção pelas máquinas a vapor e em seguida pelas máquinas movidas à combustível fóssil. Máquinas e homens aí se complementam, aumentando a produtividade.  Na Segunda Era das Máquinas, argumenta Brynjolfsson, "nós estamos começando a automatizar muito mais tarefas cognitivas, muito mais sistemas de controle que determinam como usar aquela força. Em muitos casos as máquinas de inteligência artificial podem tomar melhores decisões do que os seres humanos. Assim, seres humanos podem cada vez mais ser substituídos por máquinas guiadas por software, não se complementarem. O que torna isso possível são três avanços tecnológicos imensos que acabaram de chegar ao seu ponto de virada, avanços "exponencial", digital e combinatório." Ao contrário da Primeira Era,afirma, onde uma máquina podia levar até 70 anos para duplicar seu potencial produtivo, na Segunda não leva mais que dois anos.

Por outro lado, a queda nos preços das máquinas e dos juros nas últimas décadas, alimenta um novo cenário para o capital fixo. Bem recentemente a automação dos processos de trabalho, tinha como limite os preços, o que a restringia a grande indústria. No entanto, como as mudanças na produção estendem-se também à manufatura de máquinas e softwares que produzem  máquinas inteligentes e equipamentos para automação, observou-se um significativo declínio dos preços do que é produzido por essas indústrias. As ferramentas necessárias à automação dispensadora de trabalho humano, vêm tornando-se rapidamente acessíveis as pequenas e médias empresas, que até recentemente tinham dificuldade em adquiri-las.

Tidas em todo globo como o bastião da força de trabalho ainda não tornada supérflua, no Brasil, as pequenas e médias empresas, segundo dados do Governo, apesar de representarem só 20% do PIB, são responsáveis por 60% dos empregos no País. Financiamentos a longuíssimo prazo para investimentos em equipamentos e softwares, muitas vezes com juros subsidiados, atraem empresas sob pressão do mercado para reduzir custos de produção e aumentar a produtividade. Quando sob a influência dos fundos de investimentos  essa pressão torna-se mais acentuada na busca do lucro rápido. Parece que estamos próximos a assistir uma grande onda de fechamento de postos de trabalho em extensos setores da economia, bem maior do já vem acontecendo na esteira da revolução da microeletrônica, principalmente naqueles antes pouco afetados como reconhecem os pesquisadores.

No entanto, a discussão na mídia sobre esse novo momento, onde a ciência é mobilizada em toda sua potência pela concorrência global entre empresas e nações para atuar na produção com inovações tecnologias, limita-se a apontar soluções já mortas no nascedouro, como "os trabalhadores devem estar preparados para constantemente reciclar seus conhecimentos e buscar novas oportunidas", de certa forma jogando para estes a responsabilidade da miséria que os ronda,  ou palavras de ordem vazias como "escravizem os robôs e libertem os pobres", numa demonstração que na cega corrida pelo dinheiro, ao aproximarem-se do precipício que pode levar a um desastre social e ecológico que afete a todos não sabem em que se firmar. Quando se evidencia a possibilidade da renda dos trabalhadores cair com o desemprego abaixo de um mínimo socialmente aceitável levando a uma distribuição de renda mais desigual do que já é (Martin Wolf), vislumbra-se a possibilidade de uma renda mínima para os desafortunados garantida pelo Estado, como se o financiamento deste não fosse afetado ou deter-se poderes mágicos capaz de gerar dinheiro indefinidamente do nada sem consequências.

O discurso da produtividade e da competitividade como a solução de todos os males, mesmo assustando com o rescaldo social resultante, esquece ou desconhece que, ao aumentar a produtividade pela utilização de novas tecnologias dispensadoras de força de trabalho, incorpora-se cada vez menos "trabalho abstrato" à produção de mercadorias, reduzindo a substância do valor e, consequentemente, a acumulação de "riqueza abstrata" (dinheiro, como forma material de existência do valor) que é o fundamento do capitalismo. A tendência do capital procurar reduzir o tempo de trabalho ao mínimo, substituindo trabalhadores por máquinas, apesar de mantê-lo como única medida e fonte de riqueza (“contradição em processo”, Marx), leva a economia real gerar "riqueza abstrata" insuficiente apesar do aumento da riqueza material. Acompanha o catastrófico desemprego daí resultante, a crise de financiamento do Estado que depende para funcionar da valorização do capital e de parte da mais-valia total, recolhida na forma de impostos e taxas. Apelar para o Estado para mitigar a crise social tem, portanto, seus limites. Na relação conflituosa entre o "abstrato e o concreto" na produção de mercadorias, assenta-se a base do endividamento do Estado, das empresas e dos indivíduos; da especulação, da formação do capital fictício e das crises.

A sociedade capitalista, em seu automatismo, não consegue e nem pode apresentar soluções para esse impasse sem negar a lógica intrínseca que a movimenta relacionada com o valor, a mercadoria e o dinheiro, que independe das ações conscientes dos indivíduos. Daí a impossibilidade dos atores econômicos e gestores de políticas públicas, submetidos ao "automovimento das coisas", ultrapassarem os limites lógicos de funcionamento da sociedade capitalista ao formularem soluções na busca de governabilidade dos fatos, apesar das análises aparentemente "corretas". Se tivessem o domínio da situação não haveria incertezas e crises. As propostas resultantes das análises macroeconômicas de correntes diversas restringem-se a medidas que, no fim, alimentam a formação de capital fictício como forma de suprir as dificuldades da acumulação real estagnada, tornando as crises financeiras uma possibilidade permanente e constante no dia a dia das pessoas, e não solucionado a situação daquelas que se tornam supérfluas à produção robotizada. Não poderia ser diferente em uma sociedade onde atender necessidades é um meio e o dinheiro é o último, se não único objetivo de um "processo de produção que governa os homens” (Marx).


24.05.2014