domingo, julho 17, 2011

Nem a crise vos separa

Rall

"As explosões dos déficits ficais são predominantemente resultado de colapso na atividade econômica e nas receitas do que de socorro a bancos.  Mas a fragilidade fiscal, por seu turno, debilita os bancos, em parte porque estes detêm grandes montantes de dívida pública interna e em parte porque dependem de apoio fiscal. Os setores públicos e privados estão imbricados. A visão dos falcões republicanos nos EUA e de falcões alemães e holandeses na Europa, segundo a qual a crise tem raiz apenas fiscal é errônea. Crédito fácil acaba em crise fiscal" (1).

Se olharmos algumas décadas para traz veremos que os déficits fiscais, apesar de algumas curtas paradas, vem aumentando ou  mantendo-se em percentuais em relação ao PIB que dificilmente permitem um equilíbrio nas dívidas da maioria dos países. A arrecadação já não cobre há muito as despesas dos Estados que são obrigados a se endividarem para se manterem funcionando. A onda de privatizações que seguiu o período neoliberal onde aparentemente o mercado era soberano estar relacionada, entre outras coisas, com a necessidade dos Estados fazerem caixa e a incapacidade de investirem por escassez de recursos. O estouro da bolha em 2007, que levou a economia mundial ao colapso, acentuou o quadro do déficit fiscal e da dívida pública com os compromissos assumidos pelos governos para socorrer o setor privado e, principalmente, pela queda da arrecadação.

Essa mesma tendência ao endividamento foi observada nas famílias e nas empresas. Parte do endividamento do setor privado, que chega a ser superior a 100% do patrimônio das empresas e das famílias em muitos países, vem se deslocando para os Estados, sem nenhuma perspectiva de redução do total devido que não seja através do calote. O Estado, agora defendido por todos como última instância de salvação do capital, saiu a campo assumindo passivos podres do setor privado para conter a depressão. No entanto, não sabe o que fazer com esses papeis sem valor e com o peso dívida resultante dessa operação, que cresce rapidamente com o aumento do déficit fiscal em função da redução da atividade econômica.

Devolver ao setor privado internacional, parte dos problemas e perdas resultantes do estouro da bolha através de um default das dívidas estatais significa deprimir mais ainda a atividade econômica e, conseqüentemente, a arrecadação de impostos com repercussões negativas no déficit fiscal e na dívida pública. O imbricamento do público e do privado (irmãos siameses em eterno conflito), citado por Martin Wolf, dificulta medidas unilaterais, mas devem acontecer quando os setores públicos das nações em pior situação começarem entrar em falência. Mal se iniciou a desalavancagem do setor privado à custa do Estado, já se desenha uma crise das finanças públicas de proporção gigantesca na Europa e nos EUA. Será o segundo grande espasmo da crise, depois do estouro da bolha de crédito que alimentava o mercado imobiliário.

Está por traz do crédito ao infinito, do endividamento e insolvências, a necessidade de se manter a acumulação simulada para calar a crise da economia real. O estouro da bolha imobiliária descortinou, num primeiro momento, a crise da “valorização do valor” (Marx). A massa total de mais-valia real, que vem caindo com a redução do consumo da força de trabalho no processo de produção pela introdução das inovações tecnológicas que aumentam a produtividade (apesar de na concorrência entre agentes econômicos isolados beneficiar-se provisoriamente empresas mais produtivas), vem impactando nos lucros, juros, rendas e no financiamento do Estado. Para compensar essa queda geral de rentabilidade, a mais-valia futura é antecipada através do crédito farto a juros baixos ou negativos. Nos momentos de agudização da crise, esse movimento fica bem mais evidente.

Como a mais-valia futura é sempre empurrada para um futuro cada vez mais longínquo a se perder de vista, a atividade econômica fictícia, para simular a acumulação, está a exigir bolhas sempre maiores prontas a explodirem acompanhadas de inevitáveis estragos. O Estado e o mercado, apesar dos freqüentes estranhamentos e da predominância do mercado mundial sobre a vontade dos Estados nacionais, sempre estarão juntos nesta inconseqüente aventura humana que é o capitalismo, mesmo que sejam afetados de forma diferente.

(1) Da Itália aos EUA: realidade X utopia / Martin Wolf – Jornal Valor Econômico, quarta-feira, 13 de julho de 2011.   

17.07.2011