quarta-feira, outubro 22, 2008

A crise que não se deixa administrar

Rall


Os sinais de recessão que assolam o mundo ainda são por conta do peso do setor financeiro no PIB. Apesar das demissões nesse setor, o impacto maior será sentido quando o consumo e os investimentos sentirem toda força da escassez do crédito. Os investimentos serão atingidos duplamente: pela escassez do crédito e pela redução do consumo. É nesse momento que o desemprego atingirá com força a economia real com a redução da produção e o fechamento de fábricas. Parte dos assalariados que continuarão empregados terão seus salários achatados e reduzirão o consumo inibindo mais ainda a produção. Os estados endividados terão dificuldade de executar programas keynesianos sem o risco de uma explosão de preços. Configura-se uma situação perigosa que num primeiro momento tende acirrar ferozmente a competição, destruindo os poucos e frágeis laços de solidariedade que possam existir. Com o esgotamento dos instrumentos anti-crise do mercado e do Estado burguês, setores belicistas estarão mais ativos do que nunca.

A expansão monetária ao infinito, através da formação de bolhas, levando o dinheiro a se multiplicar sem a mediação da mercadoria, eterno desejo dos “sujeitos automáticos”, entrou em violento conflito com o dinheiro equivalente-geral, expressão do trabalho abstrato. Obrigada a se contrair de forma drástica, leva consigo a economia real que verga com a crise do valor e usa o artifício das bolhas para se manter em movimento. A crise estrutural, diferentemente das crises de crescimento, está longe do fim e mostra que o capitalismo mundial que há muito já ultrapassou as últimas fronteiras da acumulação, corre o risco de desabar sobre si. O discurso do descolamento dos países em desenvolvimento, totalmente desqualificado pelos fatos, mostra que as análises locais, apesar de necessárias, não dão conta da totalidade.

A compreensão do momento exige um esforço teórico maior do que discursos ideológicos vazios de conteúdo, muitas vezes perigosamente mobilizadores pelas simplificações e pelos apelos a soluções mágicas. Exige uma ampla e cuidadosa discussão, dentro da perspectiva de uma aliança capaz de pensar além da sociedade da mercadoria. Se a ilusão da luta de classe como “motor da história” já não convence, merece ser aprofundada a crítica considerando-se as diferenças sociais e a existência de grupos vulneráveis formados pelos expelidos da produção ou destituídos de rendimentos de qualquer espécie. A crise, ao sugar massas enormes de capital, ao destruir poderes, desestrutura sujeitos levando-os a loucura competitiva e autodestrutiva, carregada de desejos mórbidos que podem arrastar multidões sem rumo ao sofrimento. Não devemos esquecer que o espírito de Auschwitz, a “indústria da morte”, continua em ação por outros meios antes mesmo do agravamento da crise, como mostram as guerras de extermínio em algumas regiões do terceiro mundo e dos Bálcãs em pleno coração da Europa e a violência nos grandes centros urbanos.

A economia, enquanto esfera estruturante da sociedade capitalista, com a intensificação da crise, todas as atenções e recursos vão estar mobilizados para salvá-la da ruína. Resgatar um banco hoje não vai reduzir o risco de milhões passarem fome, mas pode manter o crédito que garante o funcionamento da máquina de “valorização do valor”. A população não rentável, que mais e mais se desacopla da produção, muito rapidamente será abandonada à própria sorte. Os programas sociais já restritos, nesse contexto tornam-se supérfluos. A crise pode ser ainda a justificativa para que a destruição do meio ambiente continue sem restrição. O acirramento da concorrência e a busca de novos mercados pelos países exportadores levarão a desertificação industrial de regiões inteiras. O capitalismo-cassino onde todos os jogadores ganhavam foi o atalho encontrado para o dinheiro farto e barato. Mas essa banca um dia haveria de quebrar e quebra num momento em que os indivíduos, as empresas e o Estado já não suportam mais o peso da dívida o que dificulta a saída da crise pelas vias tradicionais como querem os arautos da economia.

22.10.2008

sexta-feira, outubro 03, 2008

A linguagem da crise

Rall

A procura de uma linguagem para explicar a crise e as fórmulas abstratas irreais que buscam justificar a formação de preços dos papeis apodrecidos do capital fictício, tem levado os analista a uma descrição cada vez mais obscura e ininteligível dos fatos econômicos. O que nos disparates da fúria descritiva não se consegue explicar é transformado em gíria logo aderida por todos e o fictício torna-se ficção de qualidade duvidosa. Isso é possível quando os pressupostos da descrição da crise estão carregados de justificativas de um mundo fora controle, movido por uma lógica que passa ao largo da vontade humana.
Em sua trajetória ascendente, a crise da acumulação do capital na economia real, encontrou na formação de capital fictício a partir dos anos 80, um jeito, mesmo que enganoso, de dribla a estagnação. Foi o tempo das grandes invenções financeiras como os derivativos e outros papéis, justificados com complexas fórmulas matemáticas descoladas da produção real e sustentadas por operações do tipo carry trade entre muitas. Hoje, postas em cheque pela crise, há uma tentativa de se recriar essas abstrações através de uma linguagem esotérica, na tentativa de elucidar a crise e dela sair negando a realidade da mesma.
Se nas ùltimas décadas a saída para crise da “valorização do valor” foram as bolhas de capital fictício, alimentadas com papeis sem lastro gerados no setor público e privado, com a queima desses ativos financeiros pela deflação e com a impossibilidades do surgimento de uma nova bolha capaz de dà continuidade ao processo de formação do capital sem substância, pelo menos em curto e médio prazo, buscam-se culpados e soluções mágicas que possam preservar o mundo das mercadorias. E aí, além da obtusa linguagem, se estabelece uma arenga para ver com quem fica a pecha de bode expiatório.
Sob o açoite da crise, o discurso neoliberal se transmuta em seu contrário e os agentes do soberano mercado suplicam pela intervenção do antes ineficaz Estado. Estatizações de monta jamais vistas são realizadas para salvar setores privados inteiros, como sempre aconteceu no capitalismo em crise. O discurso estatizante tão arraigado no imaginário das esquerdas em todo mundo é solapado pela direita para salvar o capitalismo, mostrando a verdadeira face do Estado.
As dimensões da crise ainda não se delinearam. A montanha de dinheiro postos pelos governos nos mercados vem mostrando-se incapaz de garantir estabilidade do setor financeiro e o aumento da liquidez. Mesmo que isso venha acontecer por um curto período, quando o impacto da falta de crédito atingir o ápice na economia mundial, com sérias implicações para o consumo e investimentos, é provável um novo tombo das bolsas e bancos retroalimentado pelo agravamento na crise da economia real. Isso pode levar a necessidade de novos aportes de capital para o setor financeiro, que se suprido por dinheiro impresso pelos Tesouros, aumentará enormemente o risco de uma inflação descontrolada.
Paris, 03.10.2008