terça-feira, junho 13, 2006

Da doce ilusão à consentida mentira

Rall



Edgar Morin, em seu livro "Para Sair do Século XX", faz uma interessante análise do componente alucinatório da percepção. Mostrar que apesar de o pensamento mágico ser resultado de um fator "irracional", ele é determinado, na maioria das vezes, por um princípio de racionalidade. Experimentos recentes nas áreas de neurologia e psicologia evidenciam que nossa percepção das coisas e dos fenômenos não está relacionada só com o que o é captado pela retina, mais, também, com o que está acumulado, guardado no subconsciente ou mesmo no inconsciente, fruto de experiências e percepções passadas. Ou seja, o que devolvemos como sendo a visão de um objeto ou situação, não é determinado só pelo que vemos, mas por todo um complexo intrínseco ao funcionamento de nossa memória, de nosso cérebro. Não é à toa que resistimos ao novo, quando se choca com conceitos internalizados que estruturam nossa visão de mundo.
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Recentemente, conversando com um militante do PT, abalado com os escândalos no Governo Federal, dizia que tudo era montado para desestabilizar o governo e o Partido frente às eleições municipais. É evidente que em situações como essas os partidos de oposição tendem a tirar proveito. Mas o que meu amigo não entendia em sua preleção moralista e negadora dos fatos é que tais escândalos fazem parte do poder e dos caminhos para alcançá-lo. Quem aceita sentar no trono, acata essa lógica antes de chegar lá, por mais radical que seja os discursos de campanha. Quais partidos políticos chegariam ao governo sem se submeter a tais falcatruas? Simplesmente não chegariam. Essa visão ingênua não é diferente do cômodo discurso de alguns intelectuais que, enclaustrados em suas cátedras, olham "surpresos" os rumos das políticas do governo. Acham que o PT resistindo (raciocínio que não se aplica a atual conjuntura), mudaria o curso do rio caudaloso, que só corre numa direção, e não seria tragado pelo redemoinho do poder estabelecido.
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A visão alheia de meu amigo, a mesma da chamada base do partido, é reforçada pela direção (que tinha tudo muito claro ou não chegaria ao poder), com uma blindagem ideológica. Isso nos remete a discussão das instituições na sociedade capitalista. Nos interessa aqui, enquanto instituições da ordem social existente (pois não existe outra), os partidos políticos que se organizam e funcionam nos moldes empresariais. Na tão decantada democracia interna dos partidos de esquerda, forma inerente ao capitalismo, a alienação é reforçada pelo chamado centralismo democrático. Todas as discussões são afuniladas e manobradas para reforçar o poder institucional que flutua com autonomia, descolado e hostil à militância, apesar de legitimado por esta. Quem de fato representa a instituição "partido" é a direção. A energia do trabalho da chamada base é apropriada e direcionada no sentido que lhe convém. Aqueles que se rebelam são excluídos de forma impessoal pela democracia partidária, como são excluídos os que não servem ao mercado, pois, com sua rebeldia, não contribuem para o "acúmulo de forças" que beneficia a cúpula. Como essas organizações não possuem a materialidade da mercadoria, o fetiche se expressa, na sua forma extrema e mítica ao mesmo tempo, nos corpos endeusados dos chefes supremos.
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O termo "acumulação de forças" usado com tanta convicção pela esquerda na luta política é uma forma diferente de dizer "trabalho acumulado", ou seja, capital. O trabalho abstrato, é, também, o responsável pela construção e consolidação das instituições que dão sustentação ideológica à sociedade do trabalho. Na crise do valor, essas instituições, em particular os partidos políticos, como a economia de bolhas financeiras, vivem da simulação. Quando governo, nada podem fazer, a não ser administrar a crise. E aí equivocam-se à esquerda do PT e outros grupos aliados que com um discurso aparentemente diferente, propõem mudanças nas políticas econômicas e sociais. No momento em que o trabalho em crise não conta mais na acumulação de capital, insistem na idéia de uma política desenvolvimentista, criadora de trabalho produtivo, cujos primeiros estertores já eram ouvidos na segunda metade dos anos 70.
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Para "vencer" essas dificuldades, os partidos no poder, como autodefesa, tendem a se burocratizar, a se fechar e a centralizar mais ainda as decisões, relegando a militância, muitas vezes calada com cargos no aparato estatal. A alucinação dos tempos em que se acreditava religiosamente na emancipação por essas vias, cede lugar à mentira que passa ser uma necessidade à sobrevivência política. Na encenação, a realização da mentira, não importa quem suba ao palco.

31.03.2004

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