Rall
A crise do mercado imobiliário americano tem sido a notícia da vez na grande imprensa. Há um ar de surpresa nos analistas e ao mesmo tempo tentam transmitir a confiança de que tudo não passa de um rearranjo do setor financeiro sem grandes conseqüências para a economia real. Alguns chegam a defender como salutar tal freada, ‘uma forma de pôr a casa em ordem’ dizem, como se nada existisse no ‘ar além dos aviões de carreira’.
Para falar da crise atual temos que voltar um pouco no tempo, nos finais dos anos noventa e início do século XXI, quando estourou a bolha ponto.com, após a economia mundial ter amargado dois grandes tombos com a queda nas bolsas do Japão (1980) e do leste asiático (meados dos anos 90). As ações das empresas de informática e similares aumentavam de preço a cada pregão e arrastavam consigo a economia americana que crescia com parte do mundo. Falava-se em novo paradigma, artigos eram escritos e opiniões emitidas pelas mais respeitadas agencias de risco mostrando que esse impulso da economia tinha fundamentos sólidos e poucos eram os riscos. Sufocadas pelo otimismo geral, vozes isoladas alertavam que mais uma bolha financeiro estava preste a estourar. E estourou.
A economia americana entrou em recessão levando junto as demais. O FED e o Governo agiram rápido, inundando o mercado de dinheiro com cortes de impostos e juros quase negativos e foram ajudados pela intensificação na compra de papeis do tesouro dos EEUU pelos países superavitários do circuito deficitário asiático, principalmente China e Japão, que precisavam desse mercado para seus produtos. Em 2000, com dinheiro farto e barato, ganhou grande impulso a bolha do mercado imobiliário, que vinha se desenvolvendo desde o início dos anos noventa. Novamente a economia real pega uma carona na expansão jamais vista do capital fictício e ganha fôlego. A cada ano os indicadores econômicos mostram que novos países se acoplam ao bonde do crescimento fazendo a alegria geral. A China, e um pouco menos a Índia, são festejadas como os grandes baluartes da história, como os novos grandes consumidores das riquezas naturais do globo e agravantes da crise ecológica. O Brasil entra mais tardiamente, quando os obstáculos capazes de levar a uma freada brusca já eram visíveis.
Timidamente, instituições internacionais começam chamar atenção para algumas situações incômodas. Calcula-se que os derivativos, “operações financeiras cujo valor de negociação deriva de outros ativos, denominados de ativos-objeto”(P. Sandroni), beira a casa dos 400 trilhões enquanto o PIB mundial está em torno de 50 trilhões de dólares. E um desses ativos-objeto mais negociados no mundo são as hipotecas das casas dos cidadãos americanos, que são jogadas em fundos milagrosos, cujas cotas são oferecidas a outros cidadãos ávidos por lucro, em uma cadeia sem fim que socializa perdas e ganhos. Atentem que nesse tipo de operações (com derivativos) tem papéis diversos para comprar oito vezes as mercadorias do mundo, é o dinheiro reproduzindo-se sem contato com a produção.
Mas, como se faz tanto dinheiro desacoplado da acumulação real? Vale lembrar histórias recentes para um melhor entendimento. A bandeira do neoliberalismo, levantada nos anos oitenta, tinha como objetivo maior atacar os setores ‘improdutivos’, limpando ao máximo o trabalho não gerador de mais-valia nas empresas e no Estado, ou transformando o trabalho improdutivo necessário à acumulação do capital, em trabalho produtivo gerador de mais-valia através da terceirização. Iniciou-se aí um grande movimento de passar a terceiros setores inteiros que antes eram de responsabilidade do Estado, as famigeradas privatizações que ocorreram e ainda ocorrem no mundo inteiro. As empresas, seguindo a mesma política, passaram a entregar os serviços-meios, e logo em seguida outros setores a terceiros, que reduziram salários e aumentaram a carga horária dos funcionários terceirizados, restabelecendo a mais-valia absoluta como forma de se tornarem rentáveis.
O ataque neoliberal ao trabalho improdutivo, segundo a lógica do capital, não foi suficiente para reverter a queda da rentabilidade na economia real que tem como fundamento a crise do valor, situação que se agravava com a revolução da informática. Não só a expansão do trabalho improdutivo necessário ao desenvolvimento do capital punha em xeque a acumulação, mas as novas formas de produção e gestão, movidas pela concorrência global, que incorporam tecnologia e ciência, aumentam vertiginosamente o capital fixo e a produtividade, expulsando homens de antigos empregos. É a crise do trabalho agravando a crise do valor.
As exportações de capitais dos países desenvolvidos para países em desenvolvimento como a China, Índia e outros, em busca de uma maior rentabilidade, aumentaram a disponibilidade de mercadorias no mundo que precisam de um mercado para se realizarem. É quando o crédito se expande de forma jamais vista e o pagamento dos produtos adquiridos no mercado é transferido para um trabalho futuro que nunca acontecerá, pois a tendência do capitalismo é racionalizar e dispensar trabalho de forma crescente. Aí está a base das bolhas, que injetam dinheiro fictício no mercado e na produção (fictício por ser vazio de substância, não representar valor, trabalho abstrato), e aprisiona a economia real aos seus movimentos já que esta não consegue por ‘meios normais’, ‘valorizar o valor’(Marx).
Portanto, quanto mais se agrava a crise do valor mais necessita a economia real de capital fictício para manter a ilusão de que ainda funciona. As bolhas inflam, todavia logo desabam sob a pesada realidade, deixando expostos os frágeis fundamentos de uma economia que só respira nesse invólucro. Diferentemente da crise do mercado de ações das empresas ponto.com, parece que o estouro da bolha imobiliária tende atingir todos os setores da economia, inclusive as bolsas, numa reação em cadeia de explosão de bolhas e contração do capital fictício que pode levar o mundo a uma recessão sem precedente.
Mesmo com a injeção no mercado de bilhões de dólares pelos bancos centrais do Japão, Europa, Canadá e Estados Unidos, em uma ação coordenada para evitar a falência em massas de bancos, o que por si só já é uma prova da gravidade do problema, a instabilidade continua. A tentativa dos bancos centrais de substituir capital fictício que se evapora no mercado por capital fictício represados em seus cofres-fortes, buscando empurrar para frente o problema, mostra que não se vislumbra uma nova bolha em curto prazo para substituir as que estouram. Pode faltar o ar que aparenta oxigenar os tecidos mortos da economia real.
16.08.2007
5 comentários:
Oi, Rall. Ótimo texto. Bastante elucidativo. Confesso que sempre tive certa dificuldade em entender a volatização (ou sumiço, desaparecimento) do dinheiro nas crises econômicas do capitalismo, como descrita por Marx. Porém a frase "um trabalho futuro que nunca acontecerá", deste post, clareou muita coisa para mim. O capital projetando para o futuro a relação capítal fixo/variável do presente, continuamente pendendo a favor do fixo, especialmente com o avanço da informática e da robótica. Valeu. Abraços.
Olá Rall,
Estou de acordo com alguns dos aspectos da tua análise, mas não com outros. O conceito marxista de valor está completamente ultrapassado pela realidade. Por isso é insólito referires este conceito para explicares a crise actual. A teoria do valor marxista não se sustenta, enferma de erros que seriam pouco visíveis nos tempos de Marx ou mesmo em grande parte do século passado, porém agora, nos vinte últimos anos, têm vindo a mostrar a sua completa inadequação. Mas isso seria um debate a realizar noutro sítio, não como comentário ao teu artigo.
Em relação à substância do mesmo, há uma certa tendência para 'tomar os desejos pela realidade'.
Os ajustamentos na economia capitalista existem. Biliões volatilizam-se, milhões de pequenos aforradores perdem dinheiro, mas o capital financeiro reestrutura-se, surgem oportunidades de compra, surgem fusões e são eliminados alguns dos concorrentes. É assim que funciona o capitalismo. É verdade que é um enorme casino e que a quantidade de dinheiro electrónico gerado não tem paralelo com os bens reais que se podem adquirir no mercado.
Mas também é verdade que se continua a atribuir um 'valor' fetiche ao dinheiro, porque sem ele não se tem possibilidade de possuir as mais diversas mercadorias.
A grande crise do capitalismo virá - com certeza - de uma conjunção de factores:
A) Perda dum 'consenso social' com as assimetrias cada vez maiores entre ricos e pobres.
B) Perturbações permanentes causadas pelo sistema financeiro caótico.
C) Crise ecológica, com todos os seus efeitos na economia real.
D) Guerras, resultantes dos factores acima, mas que promovem uma agudização desses mesmos factores.
Resposta a luta social:
Prezado,
Se você afirma que o “conceito” valor foi “ultrapassado” pela realidade porque nos últimos vinte anos a crise dessa categoria se agudizou com a terceira revolução industrial, estamos de acordo. Se sua crítica, porém, destina-se a negar a existência dessa categoria, que como outras, mercadoria-valor-dinheiro-capital, forma uma sucessão lógica que reflete, ao mesmo tempo, a evolução histórica real”(Roman Rosdolky), não estamos de acordo.
Negar essas categorias é negar a existência do capitalismo (não esqueçamos o trabalho abstrato). Acredito que a crise da “valorização do valor” (Marx), esconde-se de tal forma atrás das camadas opacas capital fictício, das bolhas financeiras de quem a economia real não passa de um mero apêndice, que fica difícil enxergar os processos que aí se desenvolvem, principalmente quando não há interesse nisso. Os economistas burgueses há muito deixaram de se interessar, apesar dos trabalhos dos clássicos David Ricardo e Adam Smith, pois poderiam constatar a inadequação cada vez maior de, com a revolução tecnológica, medir o valor pelo tempo de trabalho. Essa dificuldade, que expressa a crise do valor, não nega a sua existência como muitos supõem. Quanto à esquerda, parte embrenhou-se no labirinto do culturalismo e se distanciou da análise dos processos condicionantes e determinantes da sociedade capitalista.
É claro que o capitalismo não existe sem crise, faz parte de sua lógica interna e mais uma crise não significa o seu fim. O que resta saber é se a crise que se avizinha, como continuação do que vem se arrastando desde os anos oitenta, onde bolhas inflam e explodem a grande velocidade, deixando um rastro de destruição e miséria, são ou não sinais reais dos limites da acumulação capitalista.
Não acredito, porém, por mais grave que seja a crise econômica e ecológica que caminhamos automaticamente para uma sociedade emancipada, apesar das possibilidades dadas. Pode ser que nos aprofundemos mais ainda na barbárie antes de mudanças mais significativas, ou nos percamos por lá.
Rall
Sim, provavelmente por isso e
necessario verificar:)
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