sexta-feira, julho 14, 2006

O FASCISMO E O MUNDO CONTEMPORÂNEO

Rall


Acho bastante pertinente a discussão sobre o fascismo desencadeado pelo referendo das armas e a análise dos discursos que trazem em seu conteúdo elementos do mesmo, num momento em que manifestações autoritárias são mascaradas pelos instrumentos da democracia. Essa é uma questão que não se esgota fácil e muitas vezes deixada de lado pelas correntes políticas que se dizem de esquerda.

Tenho dificuldade de entender o fenômeno sem uma crítica radical a sociedade burguesa. No entanto, a questão parece não se esgotar aí. Se assim fosse, não existiriam resistências ao discurso fascista ou a condutas caracterizadas como tal. Aí eu me pergunto: o que definimos como fascismo nos tempos atuais que não sejam os xingamentos? Será que o fascismo não é um fenômeno mais amplo do que normalmente caracterizamos em nossa crítica? Uma coisa é certa, a sociedade burguesa em crise tem se tornado cada vez mais intolerante. É intolerante com os pobres que em sua marginalidade são confundidos com bandidos; extremamente intolerante com qualquer tipo de situação classificada como “delito” pelas normas jurídicas e, se flagrado, o indivíduo é jogado na prisão, trem para o inferno sem passagem de retorno; intolerante com os jovens que ao não se enquadrarem nos padrões tidos como “normais”, são acusados de delinqüente e trancafiados nas Febens da vida que tão bem lhes ensinam os caminhos da violência; se hoje um jovem fizer o que fazíamos em nossa juventude está perdido; intolerante com os desempregados que vistos pelo olho assustado dos que estão provisoriamente empregados são classificados como vagabundos. (Moro num prédio de classe média, onde cada vez mais jovens se formam e ficam em casa por falta de emprego. É notória a censura a que são submetidos pelos moradores e até mesmo pelos familiares. Nas conversas estão sempre tentando se justificar como se carregassem a culpa do maior dos pecados). Intolerante com os idosos que por não serem mais produtivos são levados sem piedade para morrer (ou serem mortos?) nos albergues e asilos; intolerante com a mulher vítima de todo tipo de violência; com os enfermos que em sua fragilidade deixam seus corpos serem violados sem nenhuma reação por uma medicina mercantilizada. Em fim, uma intolerância disseminada, principalmente com aqueles que não servem à sociedade do trabalho.

Muitas vezes, a intolerância gerada nos grupos sociais é normatizada pelo Estado em nome da segurança e da defesa do cidadão, o que é grave. Quando na ditadura a intolerância era do Estado, exercida contra os direitos privados, gerava resistências. Hoje, os indivíduos amedrontados, abrem mão das liberdades em troca de uma suposta segurança. A esmagadora vitória do “não” no referendo, já vem sendo interpretada pelos arautos da segurança, como um clamor para que o Estado prenda mais, mate mais... Não é à frente do “não”, que embalada pela vitória, já se fala em um outro plebiscito, agora para aprovar a pena de morte?

A intolerância, uma manifestação do medo e do autoritarismo que grassa a sociedade, apesar de ser um dos componentes do fascismo, por si só não o define, penso eu. O nazi/fascismo surgiu numa Europa dilacerada, assustada com as revoluções “socialistas” e com o movimento operário do pós-guerra, numa Alemanha humilhada, com dívidas de guerra e milhares de desempregados, muitos deles soldados desmobilizados das frentes de batalha.Tinha seus símbolos, suas bandeiras, seus modelos ideais de uma nação de “raça pura” que em nome do nacionalismo, componente importante na trama delirante, tentava chacoalhar a população derrotada, transformando-a em massa para seus objetivos. Era também uma forma de mobilização para a superexploração em nome do dever com a nação. O trabalho, ou melhor, o sacrifício no trabalho, apresentado como nobre, digno de uma raça sem mistura, tinha um papel central no discurso nazi/fascista, estava aí um dos seus pontos de encontro com o stalinismo. Não fazia diferença se o trabalho era na fábrica ou no front, se si perdia vidas com corpos perfurados à balas ou levado ao exaustão nas fábricas militarizadas. Morrer de uma ou outra forma era “passar da Alemanha temporal à Alemanha eterna”.

A compulsão de superar tudo e a todos, interna e externamente, era um dever do cidadão ariano. O outro, um obstáculo, tinha que ser eliminado. Daí a guerra, o anti-semitismo, o extermínio dos judeus e de outros incapazes que “sabotavam com seus atos impuros o potencial do povo alemão”.

O que há em comum entre essa competição extrema, que leva a destruição dos competidores e o capitalismo atual? Na Alemanha nazista os fortes mereciam vencer, aos fracos o descarte. Quais as diferenças e quais os pontos em comum entre a sociedade atual, que na sua insana concorrência exclui sem piedade os não ajustados ao mercado, e a Alemanha nazista que cultuava a morte, vista como desfecho natural para os perdedores, os mentalmente inferiores ou para aqueles que obstaculizavam o ressurgimento da nação alemã formada por um povo puro e vencedor? A morte para os fortes, aqueles que tombam destemidos por esse paranóico ideal, tinha um significado diferente, era a glória. Para esses, as homenagens póstumas, as medalhas do terceiro Reich, a eternidade; para àqueles uma morte que não deixasse vestígios das suas impurezas sobre o sagrado território, os fornos crematórios. A realização e ao mesmo tempo a destruição de obras grandiosas, não importa o sacrifício humano, presentes nos cálculos de Hitler, não são parte da política do capitalismo atual das grandes corporações feita sem disparar um tiro?

As condições sociais atuais, a violência dos grupos mafiosos e a violência institucional, o rancor de uma classe média empobrecida, o medo que se espalha, reforçado pela forma como os meios de comunicação manipulam as informações sobre a violência; o poder desmedido e sem controle das grandes corporações que agem automaticamente em busca de sempre maximizar os lucros, com custos altíssimos para natureza e o homem; um Estado corrompido e preso aos ditames da economia globalizada, tudo isso são “meios de cultura” apropriados para barbárie de toda espécie que brota no cotidiano sem a resistência necessária.


27.10.2005

3 comentários:

Anônimo disse...

LEGAL

Anônimo disse...

LEGAL

Anônimo disse...

Rall

Sobre esta questão leia-se no "Eros e Civilização" do Marcuse sobre o caráter inerentemente agressivo, violento do superego, seu papel na formação da mônada produtora consumidora, sua participação na estrutura mental necessária ao ser "aculturado" e as predisposições funestas que ele determina.