domingo, agosto 16, 2009

Armadilha do pensar, limites do agir

Rall

As formas de sofrimento psíquico na sociedade moderna podem ser entendidas, em seu limite, como uma reação desesperada da mente aprisionada por um “substrato”, construído de sensações passadas e presentes, de prazer e frustração, e, principalmente, elaborado e reelaborado por estímulos coercitivos da sociedade do trabalho. Estabelece-se como um pano de fundo tecido com mil linhas sem orientações precisas, e funciona como armadilha do pensar destroçado. Essa forma caótica que aprisiona e move o pensamento, cimentada pela lógica de "fazer dinheiro", transforma todos em “sujeitos automáticos” da razão burguesa. Quanto mais se aprofunda a crise do trabalho na sociedade capitalista, mais fictício torna-se o que antes poderia ser chamado de valor. Essa “abstração real” (Marx), "escondida" em relações sociais fetichizadas, age como importante determinante das ações humanas no fazer da história, sem que dela se tome consciência.

No decorrer dos séculos de implantação do capitalismo, ganhar dinheiro passou a ser a única virtude inconteste entre os homens que justifica os meios. Permite-se quase tudo no mundo da acumulação simulada: o roubo institucionalizou-se em todos os níveis da sociedade, da corrupção estatal às mais absurdas formas de transações empresariais. O discurso ridículo de moralização dessas relações através de normas está fadado ao fracasso, pois isso não são “desvios de condutas”, mas parte da lógica intrínseca do sistema que não resistiria se lhe amarrassem as pernas com normatizações jurídicas, que na verdade são feitas para lhe desatar as amarras e dar garantias contra o imprevisível.

O jogo da mudança tem que ser jogado olhando-se para dentro, na busca de entendê-lo, mas também para fora desse substrato. É um jogo contra-hegemônico com seus perigos e incertezas. Não se encontra elaborada e nem se pode querer para ele uma teoria-guia, pronta e acabada como as ideologias. Mas as teorias (1) são importantes, pois se não dão conta da totalidade, apesar de que devem apontar para, podem dar pistas significantes para o movimento social, que se move dentro do leque de opções que lhe é dado, prisioneiro que é dos fetiches da sociedade burguesa. Observa-se depois de alguns ensaios onde se tateiam os caminhos da emancipação, a queda no vazio e o desânimo dos sujeitos. Brotam daí os fundamentalismos sejam militantes, sejam narcísicos, como saída desesperada para o nada.

Mesmo aberto os caminhos, não há nenhuma garantia que possam ser percorridos. Os obstáculos aparentam intransponíveis, e o mundo paralisado pode afundar-se mais ainda na barbárie, onde resistirão as fortalezas de produção capitalista, armadas até os dentes, prontas a reagirem com violência, dentro ou fora de seu território a qualquer sinal de ameaça. O substrato que move o sujeito, introjetado através dos séculos de modernidade pela violência física e psíquica, das ameaças das baionetas à morte pela fome; pelo disciplinamento no ensino, no campo, nas fábricas, na clínica, nas cadeias, nos quartéis para que se aceite o trabalho assalariado, transforma o indivíduo em sujeito desse imperativo.

Estamos piores do que nossos ancestrais nômades que pelo menos eram solidários na luta pela sobrevivência. A aparente liberdade individual, que supostamente nos liberou dos chefes imperiais, ou mesmo da opressão tribal, é pura ilusão: deixamos uma forma de escravidão para cair noutra pior, no fetiche da mercadoria, do dinheiro. Aos “não-rentáveis” (Kurz) só resta à morte física ou social, onde a vergonha aos olhos dos outros pelos insucessos, de ser um desempregado, um perdedor, não tem limites. É visto com desprezo e desconfiança pelos que ainda trabalham. O medo de antes, de ver o parceiro ocupando seu posto levado pela mortal concorrência, passa à desconfiança das intenções malévolas do outro, que num acesso pode tirar-lhe os objetos fruto do suado trabalho, ou até mesmo a vida, o que não deixa de ser verdade.

Essa brutalidade, movida pela cega competição por um lugar ao sol na sociedade do trabalho, intensificada ao absurdo nos tempos neoliberais ultra-individualista, ocupa todos os poros da sociedade, transformando mesmo os mais próximos num ajuntamento desagradável de indivíduos barbarizados por interesses monetários e de poder. Quanto mais se aprofunda a crise, não é o sentido de solidariedade que prevalece, mas o desejo de morte do outro que ameaça ou obstrui o caminho, e um medo que deixa todos impotentes e acovardados para enfrentar esse estado de coisa. Mesmo assim é preciso enfrentá-lo!

(1) Breves reflexões sobre teoria e prática


15.08.2009

Um comentário:

André Souza disse...

Parabéns!! Excelente artigo.