Rall
Quem não assistiu na mostra Inlad Empire (Império dos Sonhos) de David Lynch corra aos cinemas quando entrar em circuito comercial. Muitos vão ter vontade de sair no meio da sessão ou vão agüentar firme três horas de projeção como se estivesse olhando a vida através de um espelho com lentes de aumento. Fantasia e realidade fundem-se num todo de contornos indefinidos, sem dar direito ao espectador um fio condutor que lhe permita sair do labirinto em que se meteu ao espiar a imagem espelhada de um mundo esquizofrênico.
David Lynch talvez não saiba, mas parodia, entre tantas coisas, as agruras da vida econômica, onde a ficção vira de pernas pro ar a realidade e resolve ela mesma ser o real. Não é à toa que só se fala num mercado que compra papéis, gera novos papéis e vende papéis, num galopante movimento circular de criação de “riqueza fictícia”, uma abstração da abstração.
Quando a economia real é mencionada, parece uma tentativa de se restabelecer a convicção de que alguma coisa palpável ainda existe. Mas, mesmo quando o produto não é papel, ou um arremedo contábil que nada representa, o valor-de-uso, enquanto veículo do valor-de-troca, não tem nenhum valor enquanto objeto sensível se não for capaz de se transformar em riqueza abstrata no mundo das mercadorias.
Na atual sociedade capitalista a utilidade dos objetos já não conta mais ou conta muito pouco, inclusive o trabalho enquanto mercadoria especial capaz de produzir mais-valor. Resulta daí uma engrenagem movida por sujeitos “automáticos” que se por um lado avança destruindo rapidamente a natureza, por outro já não separa mais o lixo tóxico de produtos consumíveis. Tudo pode, não importa quantos morram e quanto de veneno será jogado no meio, desde que o produto final seja uma mercadoria que pintada pela propaganda e marketing com cores para todos os gostos, disfarça seu desejo mórbido ao abraçar o encantado consumidor, transformando-se em dinheiro.
As coisas tornam-se mais absurdas nos mercados de papéis. Uma transação que se iniciou com um ativo-objeto, por exemplo, o financiamento de uma casa que gerou uma hipoteca, pode “derivar” dessa transação uma série de “produtos” financeiros numa infindável cadeia de geração de dinheiro fictício sem nenhum controle, que só se sabe onde se iniciou, mas não onde termina. No pouco tempo em que a economia global opera com derivativos, o dinheiro fictício aí produzido já corresponde a oito vezes o valor do PIB mundial.
Se considerarmos as outras operações nas bolsas de valores, de mercadoria e futuro, no comércio internacional, na especulação imobiliária, nas mais variadas operações de crédito, nas dívidas públicas e privadas onde a cada instante geram-se milhões em dinheiro fictício, é impossível calcular o montante dessa “riqueza” sem substância. Uma aproximada avaliação só acontece, quando nas grandes crises, violentas contrações dessa aparente riqueza expõem a materialidade da economia real que ela esconde. Daí a dificuldade de se avaliar o tamanho da crise imobiliária americana, e seu impacto ao redor do mundo, enquanto todo processo não se completa.
Os problemas que se avolumam, a perplexidade das autoridades financeiras e dos analistas de plantão mostram que a crise só começou, e que os bilhões de dólares (fala-se em aproximadamente um trilhão) posto pelos bancos centrais dos países “desenvolvidos” no mercado para salvar grandes empresas financeiras do colapso, não mudam o curso, no máximo retarda do desfecho final. A tênue linha divisória entre a realidade sensível e a “abstração real” (Marx) do mundo das mercadorias, que se apaga no filme de David Lynch e nos processos sociais fetichisados, pode, nesses momentos, se vislumbrada, renovar a esperança de que a realidade esquizofrênica que nos domina e violenta possa ser superada.
22.11.2007
Um comentário:
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