Rall
O ano termina com o discurso hegemônico em um largo espectro
político, que vai da esquerda keynesiana a amplos setores da direita, defendendo
a necessidade de mais Estado regulando o mercado para que se possa sair da
crise. Desse ponto de vista a desregulamentação neoliberal é responsabilizada
pela crise financeira de 2008. A crise, no entanto, não está relacionada com condições das
instituições da sociedade conter e controlar mais ou menos o mercado. De fato,
essa capacidade vem se perdendo no tempo muito rapidamente. Mas se ela fosse
mantida, a crise seguiria seu rumo, pois diz respeito à incapacidade do
capitalismo no atual estágio gerar "riqueza abstrata" pela crescente
redução da substância dessa riqueza, o “trabalho abstrato”, na produção de
mercadorias, em consequência dos avanços tecnológicos que levam ao aumento da
produtividade e tornam o trabalho que produz valor supérfluo. Esse processo,
estimulado pela concorrência, é o que levou a máquina de “valorização do valor”(Marx)
a estagnação.
O neoliberalismo foi uma resposta a essa estagnação que não
deu certo e resultou em aumento do endividamento, estouro de bolhas, crise financeira e social. O
neokeynesianismo dos tempos atuais, tão vivamente defendido pelos economistas
de esquerda em contrapartida ao fracasso do neoliberalismo, não vai tirar a economia da estagnação, agora designada como
secular. Como tudo indica, desembocará em insolvência dos estados e numa crise
financeira de magnitude desconhecida, mas possivelmente pior do que a de 2008.
Os economistas, mesmo que neguem, em suas análises tratam o trabalho,
o dinheiro e a natureza como "exterior" ao capitalismo. No entanto,
trabalho é uma forma especial de mercadoria, específica da produção burguesa, que se diferencia das demais por produzir
valor, cuja expressão é o dinheiro. E produz valor no metabolismo com a
natureza ou com objetos naturais já trabalhados (insumos, outras mercadorias). É na
crise do trabalho enquanto “substância do valor”, que se deve buscar a essência do colapso da economia real.
A destruição da natureza e a crise ecológica são vistas como
contornáveis no sistema produtor de mercadorias. Mas a tendência com a crise de
acumulação de “riqueza abstrata” é a intensificação da utilização destrutiva dos recursos naturais na produção de grande quantidade de mercadorias para compensar
a "desvalorização do valor" e manter níveis de rentabilidade aceitáveis com um
volume maior de mercadorias produzidas. Ou seja, com a crise do valor, as
empresas capitalistas precisam produzir mais para compensar a queda da
lucratividade. E para produzir mais precisar aumentar a produtividade para
fazer frente à concorrência, tornando ainda mais supérflua a força de trabalho.
Essa lógica cega tende agravar a crise da forma de produção capitalista. A incapacidade dos analistas econômicos de ultrapassarem certos limites com suas análises e de só ficarem “contabilizando” manifestações da superfície dos fenômenos, pode resultar em grandes equívocos e surpresas.
Fala-se em recuperação da economia e os lucros dos grandes
bancos são dados como exemplo. Na verdade o chamado "lucro” dos bancos na
conjuntura atual, não passa de capital fictício, desde o dinheiro impressos do
nada pelos bancos centrais e repassados aos bancos privados, até o capital
fictício gerado por essas instituições em transições especulativas e sem
lastro. Portanto, não se trata de lucro no sentindo de apropriação de uma
parcela da massa total de mais-valia como era de se esperar do capital que
rende juros. Esse "lucro fictício", que necessariamente desemboca em abalos financeiros, transforma-se pó do dia para noite as costas dos entusiasmados agentes
econômicos e seus conselheiros.
Na medida em que o capitalismo entra em crise sistêmica,
fica mais difícil construir instituições capazes de repararem os danos do
mercado regulando para evitar os excessos. As existentes tendem a se fragilizarem e serem
capturadas pelos interesses econômicos, perdendo sua função moderadora, se isso
é possível. No mais recente espasmo da crise de valorização, o abalo financeiro
de 2008, enquanto a população era jogada na rua sem emprego e residência, o
Estado, através de seus bancos centrais, inundavam os bancos privados e os grupos
econômicos com dinheiro, mesmo que fictício. Os partidos políticos não têm, e
não poderiam ter, respostas para sair da crise, pois só conseguem agir dentro
dos limites impostos pela sociedade capitalista que lhes deu origem. Quando no
poder, tentam sem sucesso administrar a crise de forma cada vez mais
autoritária para compensar a sua incompetência de lidar com o problema.
A crise do valor, não se restringe a acumulação de capital na economia
real, mas é uma crise de toda sociedade produtora de mercadoria, das instituições e da ética burguesa, das relações ditas civilizadas erguidas para lhes dá sustentação e garantir um ambiente adequado à valorização do capital. Mas o novo não se manifesta enquanto não emergir um nível de consciência crítica que liberte os indivíduos da "gaiola de ferro" (Max Weber) e seja capaz de planejar e articular uma nova forma de produção e de organização social que transcenda
os limites das fronteiras determinadas pela sociedade capitalista. Por enquanto, no caminho percorrido pela crise, assistimos a intensificação da barbárie e desagregação do Estado.
31.12.2014