quinta-feira, agosto 27, 2009

O que antes era marginal agora domina a cena

Rall

Dos vários artigos sobre a economia que me obrigo a ler todos os dias, chamou-me atenção o de autoria de José Carlos de Assis, “Uma nova bolha no horizonte” escrito no Jornal Valor de 11 de agosto passado. O articulista levanta algumas questões importantes, pouco discutidas na grande impressa, mas derrapa nas conclusões: “a crise assinalou uma mudança de paradigma no coração do capitalismo, mas muitos tomam com simples retórica. Não se percebe que a decolagem do sistema financeiro especulativo do sistema real, origem da crise, aponta na direção de uma contradição fundamental que, na prática, só se resolverá com perdas patrimoniais incomensuráveis”, diz. Mais na frente: “os governos enterraram bilhões de dólares para salvar seus sistemas bancários. Contudo, os governos pouco fizeram para eliminar a contradição entre finanças especulativas e economia real.”

Tem alguns pontos que precisam ser esclarecidos. O Sr. Assis, fala da economia real como vítima do malvado sistema financeiro, que criou asas e dela se apartou para depois castigá-la sem piedade. Sim, de fato, o estouro das bolhas financeiras repercutiu na produção. No entanto, não entende o Sr. Assis e outros articulistas de esquerda que acusam o capital financeiro dos males do mundo, que as bolhas surgiram exatamente como a mão salvadora da economia real. Com a crise do capitalismo a partir dos anos 80, o processo de acumulação expresso pela equação D-M-D’ (dinheiro-mercadoria-mais dinheiro), cede lugar a um ativo mercado de papeis melhor representado pela fórmula D-D’ (dinheiro-mais dinheiro). A economia real para sustentar-se em pernas bambas, passa a alimentar-se de capital fictício gerado pela expansão do sistema creditício e pelas bolhas financeiras, como forma de compensar a estagnação e empurrar para frente a crise que se gestava. Em sua história, o capitalismo sempre lidou com bolhas que se manifestavam marginalmente e eram purgadas nas crises. Agora dominam a cena em frenética agitação financeira.

Na medida em que o capital disponível no mundo não achava mais na produção de bens materiais e imateriais o porto seguro para sua reprodução, foi encontrando outros meios de se multiplicar ficticiamente. Parte desse capital sem substância finca o pé na economia real, reciclando-se e buscando na base material da economia sustentação para formação de bolhas, como aconteceu no setor imobiliário. Outra parte aporta em países “em desenvolvimento” como a China, aonde a rentabilidade ainda é possível a custa de mais valia absoluta, extraída mobilizando-se em escala gigantesca força de trabalho antes adormecida no campo, que se deslocam para as cidades em movimentos migratórios jamais vistos com conseqüências imprevisíveis. Através do disciplinamento extremo utilizando-se toda forma de coerção, a exploração do trabalhador atinge o limite do esgotamento físico em países cantados em versos e prosa por uma esquerda desorientada.

A produção transcende os estados nacionais e seus nexos intercontinentais formam então, circuitos deficitários (1) que se auto-alimentam. Numa ponta encontram-se os países que recebem investimentos maciços de capital para produção de mercadorias a preços competitivos pelo uso intensivo de mão-de-obra barata; na outra, os países receptores dessas mercadorias, principalmente os EEUU, e do dinheiro dos superávits gerados por esse circuito, que ajuda alimentar o consumo interno através da expansão do crédito ao infinito e das bolhas nos diversos setores da economia. Essa movimentação fantástica de capital no globo, fictício ou não, só foi possível com a revolução da informática, que também revolucionou a produção com a automação das empresas e dispensa do trabalho. Não foi a pressa subjetiva pelo rápido enriquecimento, como fazem crer os moralistas, responsável pela crise, mas a crise da “valorização do valor” advinda dessa revolução, que em parte dispensou a mediação da mercadoria/trabalho na formação do capital, quem acelerou as ações do “sujeito automático” (Marx) em direção às pirâmides financeira.

O descolamento do “sistema financeiro especulativo do sistema real” é, portanto, bastante relativo. A lógica de produção de capital fictício, que numa análise apressada aparente uma coisa a parte, compõe um todo do qual não se exclui a produção real. Ou melhor, foi à crise da acumulação na economia real que alimentou esse processo e as mudanças de paradigmas, ao contrário do que sugere o Sr. Assis. Há muito tempo as empresas financeiras deixaram de só financiar e se apropriaram de parte cada vez maior da produção, e as empresas produtoras de bens e serviços não-financeiros passaram a ter seus próprios bancos ou a eles se associaram para garantirem o fechamento no azul de seus balanços com o capital fictício advindo da especulação. A crise contábil das empresas brasileiras que jogavam com derivativos, com a inversão da tendência do câmbio em 2008, é um exemplo miúdo de uma realidade bem mais complexa e pouco revelada. É só ver o volume de derivativos e ativos financeiros que continuam sendo negociados e em circulação, como bem assinala o articulista (US$ 650 trilhões de derivativos e US$ 160 trilhões de ativos), muitas vezes superior ao PIB Mundial estimado em US$ 50 trilhões.

Demonizar o capital financeiro e achar que é possível com regulações de toda ordem por cabresto na besta-fera e domá-la em benefício do lado “bom” da economia é pura ilusão de quem não está enxergando que a crise é uma crise estrutural profunda do capitalismo, com suas ondulações conjunturais que se manifesta na queda da economia, no desemprego crônico e crescente, no esgotamento dos recursos naturais e nas mudanças climáticas cada vez mais perigosas com o aquecimento progressivo da terra, pelos bilhões dos subprodutos degradados devolvidos diariamente a natureza por essa forma cega de produção.

(1) O circuito asiático da economia mundial

(Resposta ao artigo "Uma nova bolha no horizonte", do Sr. José Carlos de Assis, publicado em 11 de agosto de 09 no Jornal Valor)

27.08.2009

domingo, agosto 16, 2009

Armadilha do pensar, limites do agir

Rall

As formas de sofrimento psíquico na sociedade moderna podem ser entendidas, em seu limite, como uma reação desesperada da mente aprisionada por um “substrato”, construído de sensações passadas e presentes, de prazer e frustração, e, principalmente, elaborado e reelaborado por estímulos coercitivos da sociedade do trabalho. Estabelece-se como um pano de fundo tecido com mil linhas sem orientações precisas, e funciona como armadilha do pensar destroçado. Essa forma caótica que aprisiona e move o pensamento, cimentada pela lógica de "fazer dinheiro", transforma todos em “sujeitos automáticos” da razão burguesa. Quanto mais se aprofunda a crise do trabalho na sociedade capitalista, mais fictício torna-se o que antes poderia ser chamado de valor. Essa “abstração real” (Marx), "escondida" em relações sociais fetichizadas, age como importante determinante das ações humanas no fazer da história, sem que dela se tome consciência.

No decorrer dos séculos de implantação do capitalismo, ganhar dinheiro passou a ser a única virtude inconteste entre os homens que justifica os meios. Permite-se quase tudo no mundo da acumulação simulada: o roubo institucionalizou-se em todos os níveis da sociedade, da corrupção estatal às mais absurdas formas de transações empresariais. O discurso ridículo de moralização dessas relações através de normas está fadado ao fracasso, pois isso não são “desvios de condutas”, mas parte da lógica intrínseca do sistema que não resistiria se lhe amarrassem as pernas com normatizações jurídicas, que na verdade são feitas para lhe desatar as amarras e dar garantias contra o imprevisível.

O jogo da mudança tem que ser jogado olhando-se para dentro, na busca de entendê-lo, mas também para fora desse substrato. É um jogo contra-hegemônico com seus perigos e incertezas. Não se encontra elaborada e nem se pode querer para ele uma teoria-guia, pronta e acabada como as ideologias. Mas as teorias (1) são importantes, pois se não dão conta da totalidade, apesar de que devem apontar para, podem dar pistas significantes para o movimento social, que se move dentro do leque de opções que lhe é dado, prisioneiro que é dos fetiches da sociedade burguesa. Observa-se depois de alguns ensaios onde se tateiam os caminhos da emancipação, a queda no vazio e o desânimo dos sujeitos. Brotam daí os fundamentalismos sejam militantes, sejam narcísicos, como saída desesperada para o nada.

Mesmo aberto os caminhos, não há nenhuma garantia que possam ser percorridos. Os obstáculos aparentam intransponíveis, e o mundo paralisado pode afundar-se mais ainda na barbárie, onde resistirão as fortalezas de produção capitalista, armadas até os dentes, prontas a reagirem com violência, dentro ou fora de seu território a qualquer sinal de ameaça. O substrato que move o sujeito, introjetado através dos séculos de modernidade pela violência física e psíquica, das ameaças das baionetas à morte pela fome; pelo disciplinamento no ensino, no campo, nas fábricas, na clínica, nas cadeias, nos quartéis para que se aceite o trabalho assalariado, transforma o indivíduo em sujeito desse imperativo.

Estamos piores do que nossos ancestrais nômades que pelo menos eram solidários na luta pela sobrevivência. A aparente liberdade individual, que supostamente nos liberou dos chefes imperiais, ou mesmo da opressão tribal, é pura ilusão: deixamos uma forma de escravidão para cair noutra pior, no fetiche da mercadoria, do dinheiro. Aos “não-rentáveis” (Kurz) só resta à morte física ou social, onde a vergonha aos olhos dos outros pelos insucessos, de ser um desempregado, um perdedor, não tem limites. É visto com desprezo e desconfiança pelos que ainda trabalham. O medo de antes, de ver o parceiro ocupando seu posto levado pela mortal concorrência, passa à desconfiança das intenções malévolas do outro, que num acesso pode tirar-lhe os objetos fruto do suado trabalho, ou até mesmo a vida, o que não deixa de ser verdade.

Essa brutalidade, movida pela cega competição por um lugar ao sol na sociedade do trabalho, intensificada ao absurdo nos tempos neoliberais ultra-individualista, ocupa todos os poros da sociedade, transformando mesmo os mais próximos num ajuntamento desagradável de indivíduos barbarizados por interesses monetários e de poder. Quanto mais se aprofunda a crise, não é o sentido de solidariedade que prevalece, mas o desejo de morte do outro que ameaça ou obstrui o caminho, e um medo que deixa todos impotentes e acovardados para enfrentar esse estado de coisa. Mesmo assim é preciso enfrentá-lo!

(1) Breves reflexões sobre teoria e prática


15.08.2009